segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Festivais


Mirada/ Santos
Amarillo: México
Pela segunda vez aconteceu o Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas do Sesc Santos que durante dez dias reuniu espetáculos de 14 países com ênfase na produção mexicana, trazendo aos teatros da cidade litorânea paulista oito diferentes grupos. Além dos brasileiros, Galpão mineiro, XIX paulista, Companhia Brasileira de Teatro curitibano, e a Cia dos Atores e Amok cariocas, vieram a Santos encenações de países que dificilmente se apresentam no Brasil, como Bolívia, Paraguai, Peru, e tantos outros, que apenas eventualmente aparecem por aqui em festivais, como Colômbia, Espanha, Chile, Uruguai e Portugal. O corpo de curadores propõe extensa abrangência geográfica dentro desta idéia de iberoamericanidade, ponto de convergência de estéticas cênicas, ora voltadas para seu ambiente cultural, ora com pretensões de integrar correntes internacionais. O conselho de curadores admite “não haver um eixo conceitual que determine aprioristicamente uma determinada preocupação ou aponte um percurso específico de pensamento na composição do programa. Sua elaboração leva em conta a diversidade de tendências e estilos e procura abrir espaço tanto para novos nomes e companhias ditas experimentais como para artistas consagrados e com trajetórias sólidas, favorecendo o diálogo entre a tradição e a inovação.” Como país homenageado, o México enfatizou um dos aspectos mais intensos da vida dos que abandonam o país à procura de melhores perspectivas fora de suas fronteiras. A emigração é tema de pelo menos três espetáculos que tratam, direta e indiretamente, do assunto. O de maior destaque e de melhor repercussão na mostra é Amarillo do Teatro Línea de Sombra, performance-instalacão-dramática em enquadramento sócio-político. O impacto visual já se revela ao entrar na sala, quando a platéia se defronta com enorme painel-muro branco. O palco despido, com as coxias visíveis, vai sendo ocupado por gestos mecânicos dos atores, galões de água distribuidos plasticamente no espaço e dezenas de sacos de areia, com o painel de fundo agigantando-se na sua impenetrabilidade opressiva.  Amarillo, a cidade texana, ponto de atração para os imigrantes ilegais mexicanos, não é somente alvo de esperança de uma melhor sobrevivência, mas desespero diante de impossibilidades. O imigrante se descobre alguém que não existe. A falência das origens obscurece as perspectivas de futuras afirmações identitárias. O apagamento do que se deixa na partida continua na duvidosa e improvável chegada. O que poderia ser um teatro político raivoso e sectário, se torna instalação cênica que usa meios expressivos sofisticados, através dos quais, o desaparecimento do humano por razões políticas ganha discurso intermediado por sensível recriação do real. Pulsante, Amarillo dá dimensão contemporânea ao intervencionismo do teatro político, revigorando-o. Há possibilidade de próxima temporada de Amarillo em São Paulo, e somente em São Paulo.
Os Assassinos: México
Também com viéis fortemente politizante, Os Assassinos reflete a violência disseminada na sociedade mexicana, vista como narrativa absurda. Com visível influência da dramaturgia de Samuel Beckett, que se dilui em humor crítico a costumes e a imagens populares, utiliza-se dos impasses sociais para desvendar mecanismos violentos de estímulo a morte e a alienação da nacionalidade. Os recursos cênicos do autor e diretor são múltiplos e dispersantes, no loquaz espetáculo em que ao levantar questões sobre a evasão pela irrealidade de falsos conceitos, se esvaziam as suas pretensões iniciais. A sensação é de uma montagem para cuja recepção é necessário conhecer a ambientação social e cultural que a envolve. De outro modo, e a julgá-la apenas teatralmente, se parece a seleta de tendências que, apesar de algumas boas influências, não se realiza como unidade estilística. Mais do que equidistante do público brasileiro, Os Assassinos é um espetáculo árduo de se assistir. Suspeita-se que até mesmo para o público mexicano.
Em outro registro, menos pesado e carregado de intencionalidades reflexivas, O Dragão Dourado acompanha em torno de um balcão de restaurante chinês, grupo de empregados que se esfalfa para atender a clientela. Para uma das empregadas, imigrante que deixou a China e na volta, de maneira cruelmente poética à terra dos pais, ilustra o caminho do retorno através das pequenas histórias dos clients frequentes do restaurante. Com agilidade em cenas de simultaneidade nervosa, a montagem atrai pelo humor arrebatado e dramaticidade velada, em equilíbrio bem dosado.
Chaikka: Uruguai    
Do Uruguai, adaptação de A Gaivota, de Tchecov, confirma a infinita atração que esse texto extraordinário exerce sobre a cena contemporânea. Para montá-lo na atualidade e nas várias latitudes culturais, procura-se cercá-lo de invólucros que o renovem ou o lancem a novas correntes e métodos. Nem sempre tais formatos resultam em espetáculos revigoradores ou que se sustentem com adereços inúteis e desviantes. No caso de Chaika, título que a Complot Cia de Artes Escénicas Contemporáneas de Montevidéu deu à sua versão de A Gaivota, a leitura da dramaturga e diretora Mariana Percovith parece se ajustar mais às características do grupo, do que propriamente intervir com radicalidade no texto. Ambientada na arquitetura do teatro, com a ocupação de seus vários espaços, a companhia se distribui pela plateia, na maioria do tempo, e pelo palco, raramente, e em que o abrir e fechar da cortina determina tempos dramáticos. Se a princípio a adaptação tem dificuldade em estabelecer com menos obviedade os parâmetros do jogo, ao longo da montagem vai se encorpando, e habilmente ressalta os melhores e menores desvãos deste definitivo debruçar de Tchecov sobre vidas conduzidas pela sua representação.
A Colômbia apresentou através da companhia La Maldita Vanidad, grupo com apenas três anos de formação, mas que circula deste o ano passado por festivais europeus e da América  Sul, trilogia hiper-realista, reunindo O Autor Intelectual, Os Autores Materiais e Como Quer Que Queira. Cada um se volta para aspecto da realidade colombiana. O Autor Intelectual traça quadro bem explícito de crime praticado por três rapazes contra o senhorio e que se desdobra quando a diarista chega para o trabalho. Os Autores Materiais se debruça sobre o destino de mãe idosa diante da omissão dos filhos. E em Como Quer Que Queira, os preparativos de festa de debutantes não obscurecem os movimentos mais ameaçadores em torno da celebração. De realismo levado aos limites da concretude cênica (cenário detalhado, alimentos preparados no palco, interpretação que persegue o naturalismo), os colombianos expõem fraturas sociais com meios próprios da fotografia narrativa.
Hamlet dos Andes: Bolívia
Vindo da cidade de Sucre, o Teatro de los Andes mostrou Hamlet dos Andes, que já pelo título determina o alcance e a intenção de aclimatar a tragédia de Shakespeare aos altiplanos bolivianos. Com trechos em quechua, uso de água, caricatura de lutas livres e um certo experimentalismo datado, esse Hamlet se assemelha, tanto quanto possível a uma tragicomédia regional, quase uma curiosidade. O grupo, que existe há mais de duas décadas numa cidade boliviana do interior, mantém vínculo com a sua geografia cultural, inventando diálogo em que o que é produzido possa chegar a plateia, estabelecendo linguagem comum.  Pela amostra desta encenação e pela permanência do grupo por tanto tempo é de se acreditar que essa ponte tem se mantido com boa circulação em ambas as mãos.
O Nacional: Espanha
Da Espanha e sob a égide da tradicional Els Joglars, O Nacional marca a  despedida do diretor e ator Albert Boadella, que por 51 anos esteve à frente da companhia, como um depoimento-desabafo. Ainda que a montagem já tenha alguns anos, O Nacional é um testamento-panfleto de Boadella em relação ao estado da cultura na Espanha e, secundariamente, sobre  a crise econômica que assola o país. Ao abrigar indigentes no prédio arruinado da Ópera Nacional, um velho indicador de lugares do teatro decide encenar com essa trupe de desvalidos a ópera Rigoletto. A ilusão que o teatro propicia é levada ao paroxismo de transformar essa horda em metáfora da liberdade da arte. Saltimbancos de pantomina imprecativa (Boadella vocifera contra secretarias de cultura, intelectuais, prêmios, comissões, verbas), os atores demonstram sólida técnica, numa montagem de longa duração (duas horas para repetidas e recorrentes situações). Com cenas de beleza plástica, com final de efeito cenográfico atraente, O Nacional se alimenta do que o passado do grupo criou na sua longa carreira para reviver-se num presente um tanto sombrio e desesperançado.
Do Peru, o grupo Cultural Yuyacachkani volta ao tempo de um teatro político anacrônico em Sem Título, Técnica Mista, em que conjuga exposição, ou seria instalação, para usar terminologia mais contemporânea, mesmo que em desacordo com as bases de tão envelhecido espetáculo, com cenas que remontam ao realismo socialista soviético. Quadros vivos que refletem mais ação política do que efetivamente teatral, a técnica antes de se denominar de mista, deve ser chamada de única. À entrada da sala, o espectador se defronta com textos e vitrines que expõem a história peruana do ponto de vista das guerras que marcaram o país, da população indígena, registrando comentários sobre ocupações recentes da presidência do país. Os atores, estáticos como manequins, compõem a moldura. Ao se movimentar para dar vida às várias menções estampadas na exposição, o elenco é conduzido em carrinhos, acompanhados pela plateia que, de pé mais por mais de uma hora, é submetida ao percurso pelas diversas etapas desse ingênuo agip-prop.      
                                 
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segunda-feira, 10 de setembro de 2012

32ª Semana da Temporada 2012


Crítica/ A Marca da Água
Mergulho na tortuosa mecânica do cérebro 
O texto conjunto de Maurício Arruda Mendonça e Paulo Moraes, que também assina a direção de A Marca da Água, em cena na Fundição Progresso, transita por áreas tão sutis como a memória, a solidão compartilhada, o cérebro invadido pela doença, a procura da música interior e pelo “espetáculo do nada” do cotidiano. Mergulhados em tantos e tão delicados labirintos da existência, os autores constroem personagem, uma mulher que traz desde a infância problema neurológico, que reconstitui seu percurso de volta à origem, perseguindo a sonoridade aquosa que a acompanha desde sempre. O aparecimento de surrealista peixe no fluxo da vida do casal é somente a eclosão da viagem da mulher em torno de sentimentos, aparentemente delirantes, mas que determinam os rumos daquilo que sente e da apropriação
das peças soltas do puzzle do seu passado. A inevitabilidade da morte, que é comum a todo humano, na personagem é iminência. Sofrendo de crescente acúmulo de água no cérebro, não se submete a qualquer tratamento, substituindo-o pela imersão e fidelidade à musicalidade que enche a sua cabeça de sons vitais. O presente lhe parece vazio. O futuro é semelhante ao mundo, sem perspectivas. Resta o passado como tempo de resgate. A personagem recusa ajuda médica, já que não está à procura de cura, mas de reconstruir a doença como metáfora da própria vida. Os autores, aparentemente, se basearam em narrativa corrida, com linha sequencial que levasse o percurso até a um fim (o ressurgimento do pai náufrago). Esse tributo à coerência e ao acabamento, talvez tivesse restringido o adensamento poético que na montagem se traduz tão delicadamente com o elenco tocando acordeões, compondo o caminho da partitura da música interior. Apenas um detalhe secundário em texto que se corporifica pelo percurso, pelo mergulho no desequilíbrio para realizar o encontro, aproximar-se de algum sentido de plenitude. Paulo de Moraes regula a cena na mesma dimensão da escrita: poética, imagética e inconsciente. O diretor cria imagens que estão desenhadas como abstrações do real, fortes o bastante para impregná-las de significações evocativas, lançadas ao espectador como quadros em movimento. O ritmo que imprime a esses quadros é que estabelece a nervosidade da cena e o lirismo da ambientação. Como cenógrafo, Paulo de Moraes traça com geometrismo a área da representação - painel de quadriláteros e tanque retangular -, equilibrando a fisicalidade da água e a volatividade das projeções de Rico Vilarouca e Renato Vilarouca. Esse ambientação acondiciona com suas linhas retas a tortuosa mecânica do cérebro. O elenco acompanha com retilínea composição a racionalidade emocional do entrecho. Ricardo Martins, Marcos Martins, Marcelo Guerra e Lisa E. Fávero atuam como um coro harmônico de muitas vozes afinadas para que Patrícia Selonk detalhe o seu instigante solo. A atriz, sem dramatismos e exterioridades, mergulha no túnel de águas revoltas da personagem com rigor racional e fina emocionalidade. Demonstração da maturidade e inteligência da intérprete.       
   

Crítica/ A Gaivota
Longe de desvendar os mistérios de uma dramaturgia
Tchecov dizia que sua dramaturgia tinha humor. Mais do que uma boutade, o autor russo indicava com a afirmação que seu teatro não era feito de camada uniforme. Com várias e embutidas camadas, a cada encenação de suas peças, pode se descobrir rumos e outros atalhos interpretativos. Nada em Tchecov aponta para o unívoco, para um só caminho. Há comédia, drama, e se quisermos até melodrama, mas o que sobressai de todas os indícios estilísticos é o impenetrável mistério da existência, e é dele que se está sempre perseguindo a cada encenação. A versão de Bruno Siniscalchi, em cartaz no Teatro Gláucio Gill, prossegue, a seu modo, no desvendamento dos meandros do mistério tchecoviano. Fica distante de tocar no mundo incompleto dos personagens, nos silêncios aos quais se pode atribuir tantos ruídos e no vazio dos gestos e no ardor das palavras. A perspectiva do diretor é a de sintetizar, eliminar o embate, a interioridade, fracionar para reduzir e facilitar, se interpor ao entrecho. Na tábula rasa a que se reduz a encenação de Siniscalchi, abandonam-se vestígios de substrato e intenções de estabelecer atmosfera. A idéia, se há alguma mais consistente, desvia-se para outra direção, não exatamente para alguma opção palpável, perceptível para além do arbítrio, o que somente subtrai, esvazia e empobrece. A ocupação cenográfica da totalidade do palco e de parte da platéia com centenas de girassóis, se provoca impacto inicial, se esvai pelo esgotamento  monótono da visualidade e pelo pouco aproveitamento da iluminação. E se todo esse desacerto não bastasse, o diretor conduz o elenco de forma inexpressiva e descaracterizante. Se a princípio, imagina-se que alguns atores seguem um naturalismo hesitante, em seguida percebe-se que cada um parece decidir o que e como interpretar seus personagens. Julia Lund empresta uma certa mutabilidade a Nina, o que Carla Ribas não consegue na padronização e rigidez de sua Arkádina. Karina Teles, ainda que timidamente, dá vida a Macha. Gabriel Pardal uniformiza, pela linearidade de sua atuação, o Trepliov. Thales Coutinho está muito distante de qualquer abordagem concreta de Miedviênko, e Ricardo Gonçalves contribui para a invisibilidade e o esfumaçamento da canalhice de Trigorin.    

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terça-feira, 4 de setembro de 2012

31ª Semana da Temporada 2012


Crítica/ Gozados
Amy Winehouse em versão ainda mais politicamente incorreta
O trocadilho e a sugestão do título apontam para  o tipo de humor deste show de comédia em cartaz no Teatro dos Quatro. Gozados é sequência de Subversões, que desde 1990 vem cativando platéias com versões nada reverentes de canções populares. A última temporada de Subversões aconteceu meses antes da estréia de Gozados, o que demonstra o poder de atração dessa brincadeira longeva. Em temporadas intermitentes, o original permaneceu em cena, conquistando públicos de gerações diferentes, formando cultores de suas letras-paródias de variadas músicas. Provavelmente é para atrair essa platéia seguidora que Luiz Salem, ator, e Stella Miranda, diretora, da primeira versão retomam a mesma trilha, agora com ambos no palco, na tentativa de repetir a fórmula. Se a intenção terá sido esta, talvez consigam sucesso pela fidelidade, ainda que, por precaução, apresentem um número retirado de  Subversões. Mas se, ao contrário, a dupla pretendeu ampliar a brincadeira, Gozados perde na comparação, em vigor e espírito, já que músicas e esquetes pesam na excessiva insistência em ambuiguidades sexuais e no linguajar vulgar. Quadros longos e pouco comunicativos, como os dos musicais e da cantora Amy Winehouse, desequilibram e quebram a voltagem do humor, que se mostra bem mais interessante quando recorre à crítica mais depurada e a citações oportunas ao politicamente correto. Quando esse cacoete hipócrita da vida social é exposto em seu ridículo, Gozados ganha outra embocadura na comicidade. Luiz Salem, bem mais à vontade e com inteiro domínio da cena, tem participação solta e identificada com o material cômico. Stella Miranda está mais contida e menos próxima ao estilo do humor que interpreta .    

Crítica/ O Filho da Mãe
Diálogo entre mãe e filho travestido em lugar comum 
Regiana Antonini mantém o registro de comediógrafa em O Filho da Mãe,  cartaz no Teatro Vanucci, confirmando pelo humor o desejo de exaltar a maternidade como vocação feminina incondicional. A mulher que é abandonada pelo marido transfere frustrações, ciúmes e desejos reprimidos ao amor maternal. A convivência de mãe e filho, do início da adolescência até a idade adulta do garoto, que está de partida para o exterior, é exposta em tempos paralelos que se misturam para apresentar o painel doméstico do relacionamento. A autora nem sempre domina a técnica de flashback, e sua complacência para com a comicidade fácil faz com que os diálogos, alguns até com observações bem sacadas, se percam no lugar-comum. Mãe e filho são tipos, não exatamente personagens, e estão, especialmente ela, a procura do riso como um fim em si mesmo. Os monólogos sobre a “nobreza” da maternidade ficam deslocados em meio a tantas piadas e reiteração da trama. O diretor e ator Eduardo Martini toma a si a  responsabilidade de encenar e atuar, tentando fugir à montagem original de há três anos. Em travesti interpreta a mãe em composição que traça o humor, exatamente pelo fato de ser um homem vivendo uma mulher. O ator não exagera ou apela, fica no limite das possibilidades de comicidade oferecida pelo texto. Bruno Lopes é o filho.

Crítica/ Na Sobremesa da Vida
Conversa de um ator sobre sua carreira 
Baseado no perfil de Emiliano Queiroz, publicado na Coleção Aplauso, o espetáculo que tem o mesmo título do livro e a mesma autora, Maria Letícia, está em cena no Teatro dos Quatro. Tanto livro quanto espetáculo revelam o desejo do ator de contar sua história no teatro, cinema e televisão como balanço profissional de 60 anos de atividades. Emiliano tem boas histórias a contar, desde o começo em Fortaleza até as pitorescas vivências como autor de novelas, a criação de Veludo em Navalha na Carne e da Geni na Ópera do Malandro. A montagem, assinada por Ernesto Piccolo, arruma com bastante modéstia a versão teatral do perfil escrito. Com a participação de Ivone Hoffmann, Antônio dos Santos e Ana Queiroz, coadjuvantes do personagem principal e único, a montagem é arrastada, artesanalmente pobre, que tem na vontade de Emiliano Queiroz compartilhar com o público uma trajetória de tantos anos. É dele o palco. 

Crítica/ Michael e Eu

Não basta ter uma idéia, ou se encantar por um desejo para fazer deles uma criação artística. Por mais que o autor desta sucessão de vídeos e de mal alinhavada costura de arremedo de trama se lance em temporada no Teatro do Leblon, as razões para encená-los, quaisquer que sejam, se mostram insuficientes para levantar tão banal empreendimento. Marcelo Pedreira baseou-se na história real de um fã fanático de Michael Jackson, colecionador de todo tipo de memorabilia sobre o cantor, capaz de atitudes cotidianas, ou ausência delas, que se regulam por esta idolatria. Para tanto, criou um psicanalista nada ortodoxo, um fanfarrão quase tão fora do ar quanto o paciente, este, o fã sem rumo, os dois, personagens-pretexto para exibição de cenas de shows de Michael Jackson. Não há nada que se assemelhe a um eixo dramatúrgico, muito menos a roteiro de show oportunista. A trama é tão pífia que pouco avança para além de descosturado arranjo cênico. O diretor Ivan Sugahara coordena com mão solta esse material inconsistente, com um único momento mais vivo, que pode ser considerado um golpe de teatro: a aparição da figura de Jackson. No mais, uma abertura ao som de Carmina Burana, imagens inexpressivas e atores rotineiros. Pedro Henrique Monteiro parece um fã sem paixão. Bruno Garcia, um psicanalista caricato.   

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quarta-feira, 29 de agosto de 2012

30ª Semana da Temporada 2012


Crítica/ Navalha na Carne
                                    
                                              Fotografia de personagens em fim de linha

O texto de Plínio Marcos, escrito na década de 60, com seu naturalismo exacerbado e personagens à margem, que tanto escandalizou quando de sua estréia, cinquenta anos depois, esvaziado do impacto inicial, permanece sólido como estrutura narrativa e forte na ação dramática. O trio de desgarrados, confinado na sua miséria social e solidão afetiva, ainda se sustenta como retrato de disputa sem vencedores e perspectivas. Nenhum dos personagens escapa da violência sob a qual sobrevivem, e por mais que uns tiranizem os outros, todos estão submetidos à mesma e inescapável condenação a degradados papéis sociais. Os diálogos que expõem cruamente essa rotação de sentimentos destroçados são de um verismo verbal que não se esconde em nuances. Todo o quadro criado por Plínio Marcos ainda se sustenta dramaticamente e se mantém íntegro a cada nova montagem. É o que acontece agora na direção de Rubens Camelo, que estreou no ano passado num hotel de prostituição na Praça Tiradentes, usado com cenário natural para acondicionar o entrecho. A ambientação num quarto do hotel pode ter conferido maior realismo do que no exíguo espaço do Porão da Casa Laura Alvim, mas a proximidade da platéia no novo espaço  não alterou a veemência do entrecho. O entrechoque entre a prostituta, o cafetão e o homossexual num sórdido quartinho, em que cada um com violência, ora física, sempre verbal, atinge os espectadores como co-integrantes de fotografia superexposta de realidade humana. O que prova a durabilidade do texto e a manutenção de sua imperiosa contundência. A montagem de Camelo se atém ao naturalismo e não quer inventar. Lança, prudentemente, toda a responsabilidade da cena para o elenco, que reproduz o embate emocional dos personagens com vigor físico. Tanto Zé Wendel, como o homossexual, quanto Rogério Barros e Marta Paret não dramatizam o que deve ser somente mostrado. Nenhum deles exagera na composição, encaminhando as interpretações para o aspecto mais fotográfico, fixando-se no retrato cruel de três indivíduos em fim de linha.


Crítica/ Artaud – A Realidade É Doida Varrida
Ritual sem a densidade do grito
Antonin Artaud em seu poético, delirante e anti-realista teatro da crueldade foi um criador inflamado, confundindo tormento e lucidez, existência e literatura, desconstrução e reflexão em arrebatada unidade biográfica. O confinamento em manicômios não elimina a razão do artista que persegue a “metafísica em ação”, o absoluto do “pensamento em estado puro” em busca da “linguagem em forma de encantação”. Com direção, interpretação, cenário, figurino e seleção musical de Marcos Fayad, Artaud – A Realidade É Doida Varrida se baseia na apresentada no Teatro Ipanema na década de 90, pelo menos na utilização do texto. Dividido em módulos (teatro, loucura, depoimentos, criação), que tecem o rosto de vários Artauds, apoiando-se no estado alucinatório, que o teórico pretendia fosse “o principal meio dramático”, o texto de Rubens Corrêa e Ivan Albuquerque se alimenta de diversos de seus escritos  sobre o que viveu nas suas internações e construção de pensamento teatral. Como interno ou como homem de teatro, concebe a existência como manifestação ritualista que o aproxima da essencialidade dos movimentos da natureza e do sagrado do mecanismos da cena. E é dessa coleta de fragmentos emocionais e da sintonia com transformações da arte de que é feita a celebração de um temperamento em ebulição. A versão atualmente no Galpão das Artes do Espaço Tom Jobim segue a original, pelo menos como o mesmo desejo de recriar um pensamento nos seus próprios termos. Para tanto, Fayad abriu a cenografia (no Ipanema, a encenação era sob o palco e bastante soturna), utilizou projeção de tela de Van Gogh (a análise de Artaud sobre a obra é envolvente), desenhando interpretação com muitos gestos. Em pouco mais de uma hora, o ator não se apropria, verdadeiramente, dos seus meios expressivos. Os gestos são coreográficos, mas sem fundamentos dramáticos, numa linearidade interpretativa desprovida de modulações e de intensidade que os monólogos interiors de Artaud carregam. Marcos Fayard exterioriza as palavras, projetando-as sem a ritualidade que lhes é implícita e enfraquecidas da densidade de seu grito.

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segunda-feira, 20 de agosto de 2012

29ª Semana da Temporada 2012


Crítica/ Milton Nascimento – Nada Será Como Antes
Excelente coral de individualidades celebra repertório
O modelo é o bem sucedido Beatles Num Céu de Diamantes, que a dupla Claudio Botelho e Charles Möeller estreou há seis anos, inaugurando estilo de encenar repertório musical. Naquela sequência de canções do grupo inglês, sem recorrer a uma única palavra, a não ser das letras, se percorriam as músicas com leve toque de interpretação (no sentido dramático) em encadeamento cênico marcado, unicamente, pelo roteiro musical. Em Milton Nascimento – Nada Será Como Antes em cartaz no Theatro Net Rio a fórmula se repete com a roteirização da obra do compositor revivida como construção teatral que se aproxima de Milton em laboriosa costura. Dividida em estações do ano, a montagem reúne na primavera canções de uma certa evasão poética (Cigarra, Um Girassol da Cor dos seus Cabelos, O Trem Azul, Nuvem Cigana, Clube da Esquina). No verão, sons solares se misturam a algumas sombras quentes (Aqui É O País do Futebol, Bola de Meia, Bola de Gude, Maria, Maria, Caicó Cantiga). No outono, se ouve o declínio das esperanças num país silenciado (Saudades dos Aviões da Panair, Encontros e Despedidas, Canção da América, Fé Cega, Faca Amolada). No inverno, vozes procuram quebrar o silêncio (Oração, Credo, San Vicente, Sentinela, Menino). Essas categorias climáticas servem, à perfeição, para abranger os momentos da música de Milton Nascimento e da poética de seus parceiros – Ronaldo Bastos, Fernando Brant, Lô Borges, Márcio Borges. A passagem do tempo, partindo dos anos 70, se fixa no percurso paralelo em que as criações dialogam com as fraturas de vivência coletiva. Sem a obviedade da citação, Botelho e Möeller contam, não somente sobre uma obra, mas como esta obra surgiu e a força de sua permanência. A música e as letras conduzem a lembranças, para os mais velhos, e à inteireza e a revelação do repertório, para os mais jovens. Ao cercar de tanto cuidado na abordagem, ordenamento e seleção deste formato de musical, a dupla o estende aos demais planos da cena. O cenário de Rogério Falcão, que lembra sobrado de cidade histórica mineira, com esboço de papel de parede antigo e  elementos (lustre, móbile, biombo, móveis) que mudam a cada estação, estabelece visual sugestivo e agradável. O pequeno trem de madeira no proscênio, acrescenta mais um toque de mineiridade à ambientação. Apenas o figurino fica aquém do traço evocativo. É tão somente ilustrativo e pouco inventivo. Mas o maior destaque de Nada Será como Antes está na força musical, seja na direção de Claudio Botelho, nos excelentes arranjos e orquestração de Délia Fischer, nos ótimos arranjos vocais de Jules Vandystad e nos atores-músicos – Cássia Raquel, Claudo Lins, Délia Fischer, Estrela Blanco, Jonas Hammar, Jules Vandystadt, Lui Coimbra, Marya Bravo, Pedro Aune, Pedro Sol, Sérgio Dalcin, Tatih Köhler, Whatson Cardozo e Wladimir Pinheiro. A alta qualidade e sofisticação técnica que envolvem essa equipe com domínio instrumental e vocal de alto nível projeta com sensibilidade e competência as nuances de repertório bastante conhecido. Canções com marcante interpretação e arranjos originais e com os quais Milton consolidou sua carreira, ganham ar renovado, mas sem retirar-lhes o sopro poético e a riqueza melódica. São recriadas e revigoradas, e em várias delas, até valorizadas. O elenco, de impecáveis vozes e viva presença, deve ser destacado como um todo. Não há como ressaltar nomes, quando o conjunto se integra tão harmoniosamente como um coral de precisas individualidades sonoras.


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quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Outros Palcos


São Paulo

Crítica/ O Poder da Loucura Teatral
Movimentos em série em direção à permanência de linguagens
A edição deste ano da Mostra Sesc na área teatral reuniu programação instigante, com a participação de grupos internacionais que se movimentam pelos cânones das artes cênicas se apropriando de outros meios expressivos que os complementam e os fazem avançar nas possibilidades de explorar  linguagens. O Poder da Loucura Teatral, que encerrou a mostra de duas semanas no Sesc Pinheiros, é o exemplar-síntese de curadoria muito bem sintonizada com os múltiplos caminhos tentados pelo teatro na sua busca de ampliar os meios de permanência a qualquer e a todo tempo. Nesta elegia teatral do belga Jan Fabre há espaço para que esses meios se experimentem como cena. Existe a palavra, mas é assessória e ritmada para marcar o movimento. Existe a dança, mas é gestualidade e ação para capturar a narrativa. Existe a performance, mas é dramaturgia para construir  cenografia física. Existe o música, mas não é trilha, sonorização para cenas seriadas. O exercício deste poder louco de juntar elementos para criar um fluxo que, ainda que os contenham, não privilegiam nenhum deles, percorre rotas  para investigar rumos, não chegadas. Por mais que procure atalhos ou redefina códigos, essa peça-perfomance-dança-musical-show-espetáculo vai atrás da permanência do teatro e da dança através dos meios que lhe são formadores, ao mesmo tempo que os desmentem com a reversão de seu uso. Fabre cria compartimentos formais que ainda que retirados das suas origens teatrais, musicais e de  dança eliminam a palavra, utilizada apenas como citação, a sonoridade melodiosa, emitida somente como ruído, o movimento, projetado quase como exercício de repetição. Nas 4h20 de espetáculo, sem intervalo, esse jogo de técnicas e diluições de referências  é moldado por ação ritmada, em que tudo se repete à exaustão. A relação de nomes citados (diretores teatrais, coreógrafos e grupos de criação artística), a recorrência de gestos e de passos, e a marcação coreográfica de metódica dramática, compõem quadro que, pela inversão de funções, quebra a fixidez do compartimento. A montagem se agita todo o tempo de sua duração, com as cenas se armando e desarmando aos olhos da platéia como se procurassem reproduzir o processo de criação dos quadros clássicos que inspiram e ilustram a força da loucura da arte e que são projetados ao fundo. Os atores-performers-bailarinos são extraordinariamente bem equipados para desempenhar as múltiplas intervenções neste aplicado recondicionamento de convenções e expandido limite das potencialidades de atuação. O elenco é capaz, quase ininterruptamente e em posição frontal para a platéia, de correr, como se estivesse numa esteira de exercício, falando uma série de nomes com poderosa emissão vocal e surpreendente preparado físico. E não é apenas uma demonstração de virtuosismo e de bom preparo na sala de ensaio, mas a expressão de técnica e de integração à proposta do encenador. A estética de Jan Fabre descarna a dramaticidade em favor da seu questionamento como linguagem mutante. Expurgada de emoções, emerge da cena a exposição dela própria como matéria artística, deixando à mostra uma certa eugenia de criação (sem qualquer conotação ideológica ou histórica) que padroniza, pela seriação, os desviantes e incertos caminhos da contemporaneidade.       


Crítica/ Dorotéia
A farsa irresponsável de Nelson Rodrigues
Depois de temporada no Poeira, em Botafogo, essa “farsa irresponsável” como a definiu seu autor Nelson Rodrigues, chega a São Paulo, e pode ser vista no Teatro Raul Cortez. A encenação de João Fonseca evita, o quanto é possível pelas difíceis características do texto, a caricatura rasgada, talvez um dos únicos meios de torná-lo menos bizarro. As obsessões rodriguianas parecem um tanto exageradas, reduzidas a simbologia primária e a narrativa melodramática. O diretor se desvia, na medida limitada que a farsa oferece, desses aspectos grotescos e carregados, deixando à vista apenas a trama no seu desenvolvimento linear. Para tanto, se cercou de cenário de Nello Marrese, que explora a cor preta em contraste com pingentes brilhantes, do qual a iluminação de Luiz Paulo Nenen tira o melhor partido. João Fonseca ao optar por compor o trio de tias com atores, de certa maneira demonstra o desejo de intervir de modo mais autoral em personagens tão pateticamente conotados. Tanto Paulo Verling, quanto Alexandre Pinheiro, e em especial Gilberto Gawronski, acentuam esse patético em hiper-interpretação carregada de gestos e máscaras hirtas. Keli Freitas e Marcus Majella acompanham com a mesma intensidade de atuação o trio. Alinne de Moraes é um bonita presença em cena.  


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domingo, 12 de agosto de 2012

28ª Semana da Temporada 2012


Crítica/ A Partilha
Comédia de sabor agridoce e aroma amoroso
Há 22 anos estreava no Teatro Cândido Mendes uma modesta produção com quarto atrizes, a maioria delas conhecida pela televisão, que lançava o primeiro texto de maior fôlego de Miguel Falabella. A repercussão crítica e popular desta habildosa comédia dramática de Falabella, que foi vista por milhares de espectadores, excursionou pelo país durante anos e foi levada ao cinema, agora ganha nova temporada no Teatro Oi Casa Grande. Nesta revisão, confirmam-se suas qualidades, reitera-se a sensibilidade do autor para o universo feminino e para comédia de costumes da classe média. Ao escrever sobre o texto na época, dizia que A Partilha é uma peça simples na qual quatro irmãs se encontram no velório da mãe. retomando pela circunstância da morte (o fim de um tempo) o passado comum. A divisão dos bens, deixados pela morta, acentua as diferenças entre elas e o início de possíveis transformações, lançando-as num jogo em que a crueldade serve de estímulo para que, da divisão, cheguem à unidade, simbolizada pelo conjuntinho de café da Toddy, objeto da união afetiva. Não é fácil trabalhar planos tão sutis quanto os da emotividade e do riso. Um velório pode ser cenário para o humor, tanto quanto a lágrima que devolve vivências. Os objetos, desmembrados para se transformarem em dinheiro, não têm apenas o valor passível de ser contabilizado monetariamente. São sinais evidentes de expressões afetivas. Miguel Falabella administra essas realidades dramáticas com exemplar delicadeza ao contar história para encontrar as motivações das personagens. Falabella sente a alma feminina. Além dessa enorme sensibilidade do autor para captar as recorrências das emoções, A partilha demonstra ser uma peça com excelente bom humor. O riso acompanha a história suavemente ácida dessas mulheres. O seu melhor sabor é o agridoce. O seu melhor aroma é o amoroso. A montagem de Miguel Falabella que se encaixava tão bem no Cândido Mendes (o tamanho do teatro envolvia o intimismo do texto) poderia ter se esgarçado no amplo palco do Casa Grande e, deste modo, perdido a sua real medida. Mesmo que tenha sido necessário o uso de microfones pelas atrizes e que o cenário tenha se expandido para a adequação à embocadura do palco, a segurança do diretor, agora acrescida da maturidade, fica confirmada. Miguel Falabella passeia pelo seu texto, impondo poucas ou quase nenhuma novidade à sua direção original, preservando aquilo que a peça tinha de mais atraente, aparando aquilo que tinha de menos resolvido. Cenário e iluminação funcionam, apenas o figurino, em especial o da personagem de Susana Vieira  se mostra exageradamente infeliz. O quarteto de atrizes – Arlete Salles, Susana Vieira, Patrycia Travassos e Thereza Piffer -, praticamente o mesmo de há duas décadas, não tem dificuldade de reproduzir  os bons desempenhos do passado, compensando o inevitável passar do tempo com certa malícia de o incorporar com pequenos detalhes críticos. A Partilha, neste nostálgico revival, demonstra-se certeira lembrança para o público.
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