Crítica/ Navalha
na Carne
O texto de Plínio Marcos, escrito na década de
60, com seu naturalismo exacerbado e personagens à margem, que tanto
escandalizou quando de sua estréia, cinquenta anos depois, esvaziado do impacto
inicial, permanece sólido como estrutura narrativa e forte na ação dramática. O
trio de desgarrados, confinado na sua miséria social e solidão afetiva, ainda
se sustenta como retrato de disputa sem vencedores e perspectivas. Nenhum dos
personagens escapa da violência sob a qual sobrevivem, e por mais que uns
tiranizem os outros, todos estão submetidos à mesma e inescapável condenação a
degradados papéis sociais. Os diálogos que expõem cruamente essa rotação de
sentimentos destroçados são de um verismo verbal que não se esconde em nuances.
Todo o quadro criado por Plínio Marcos ainda se sustenta dramaticamente e se
mantém íntegro a cada nova montagem. É o que acontece agora na direção de
Rubens Camelo, que estreou no ano passado num hotel de prostituição na Praça
Tiradentes, usado com cenário natural para
acondicionar o entrecho. A ambientação num quarto do hotel pode ter conferido maior
realismo do que no exíguo espaço do Porão da Casa Laura Alvim, mas a
proximidade da platéia no novo espaço não alterou a veemência do entrecho. O entrechoque entre a
prostituta, o cafetão e o homossexual num sórdido quartinho, em que cada um com
violência, ora física, sempre verbal, atinge os espectadores como co-integrantes
de fotografia superexposta de realidade humana. O que prova a durabilidade do texto e a manutenção de
sua imperiosa contundência. A montagem de Camelo se atém ao naturalismo e não
quer inventar. Lança, prudentemente, toda a responsabilidade da cena para o
elenco, que reproduz o embate emocional dos personagens com vigor físico. Tanto
Zé Wendel, como o homossexual, quanto Rogério Barros e Marta Paret não dramatizam o que deve ser somente
mostrado. Nenhum deles exagera na composição, encaminhando as interpretações
para o aspecto mais fotográfico,
fixando-se no retrato cruel de três indivíduos em fim de linha.
Crítica/ Artaud –
A Realidade É Doida Varrida
Ritual sem a densidade do grito |
Antonin Artaud em seu poético, delirante e
anti-realista teatro da crueldade foi um criador inflamado, confundindo
tormento e lucidez, existência e literatura, desconstrução e reflexão em arrebatada
unidade biográfica. O confinamento em manicômios não elimina a razão do artista
que persegue a “metafísica em ação”, o absoluto do “pensamento em estado puro”
em busca da “linguagem em forma de encantação”. Com direção, interpretação, cenário,
figurino e seleção musical de Marcos Fayad, Artaud
– A Realidade É Doida Varrida se baseia na apresentada no Teatro Ipanema na
década de 90, pelo menos na utilização do texto. Dividido em módulos (teatro, loucura, depoimentos,
criação), que tecem o rosto de vários Artauds, apoiando-se no estado
alucinatório, que o teórico pretendia fosse “o principal meio dramático”, o
texto de Rubens Corrêa e Ivan Albuquerque se alimenta de diversos de seus escritos
sobre o que viveu nas suas internações
e construção de pensamento teatral. Como interno
ou como homem de teatro, concebe a existência como manifestação ritualista
que o aproxima da essencialidade dos movimentos da natureza e do sagrado do
mecanismos da cena. E é dessa coleta de fragmentos emocionais e da sintonia com
transformações da arte de que é feita a celebração de um temperamento em
ebulição. A versão atualmente no Galpão das Artes do Espaço Tom Jobim segue a
original, pelo menos como o mesmo desejo de recriar um pensamento nos seus
próprios termos. Para tanto, Fayad abriu a
cenografia (no Ipanema, a encenação era sob o palco e bastante soturna),
utilizou projeção de tela de Van Gogh (a análise de Artaud sobre a obra é envolvente),
desenhando interpretação com muitos gestos. Em pouco mais de uma hora, o ator
não se apropria, verdadeiramente, dos seus meios expressivos. Os gestos são
coreográficos, mas sem fundamentos dramáticos,
numa linearidade interpretativa desprovida de modulações e de intensidade
que os monólogos interiors de Artaud carregam. Marcos Fayard exterioriza as
palavras, projetando-as sem a ritualidade que lhes é implícita e enfraquecidas
da densidade de seu grito.
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