domingo, 31 de janeiro de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (31/1/2016)

Crítica/ “Processo de conscerto do desejo”
A dor de um luto insuperável

Ainda que a angústia, fragilidade e lembranças sejam dos escritos de sua mãe, Maria Cecília, as reverberações dos sentimentos são do menino Matheus, que desde recém-nascido viveu com o silêncio de quem o deixou ao suicidar-se aos 22 anos. A imagem dessa maternidade apenas esboçada, construída pela narrativa dolorida e retalhada da paternidade, se transforma em memória vivificada pelos poemas deixados como testamento da ausência. Aquela que escolhe abandonar a vida, é a mesma que registra a amargura pela impossibilidade do afeto no diário agridoce do bebê de quem está prestes a renunciar. A poesia documental de emoções sombrias, afetos turvos e desassossego obscuro, encontra na interpretação simbiótica do filho que se investe da mãe para espelhar a ligação interrompida, mas indissolúvel. No recital de poesia autoral e músicas preferidas, a figura da mulher silenciada pela escolha da morte emerge na voz filial que ecoa como  uma iluminação audível. Jogar luz sobre esse  “conscertar” (de conserto e cantar) é o desejo de se conduzir pela escuridão do luto, reunindo pedaços de uma existência que se apaga, deixando rastro de penumbras. Matheus Nachtergaele não deixa dúvidas do que se fala é da dor, a que carrega em si mesmo e as que trazem as palavras maternas, como num rito de comunhão. O ator envolveu sua atuação de músicas que relembram preferências da mãe e que embalam, na execução de Henrique Rohrmann (violino) e Luã Belik (violão), o ambiente melancólico e tristonho que domina o que Matheus definiu como “oração profana”. Com o cuidado de se caracterizar como processo, o espetáculo assume a função quase catártica de dar contornos a sentimentos disformes e sensibilidades confusas. Há zonas apagadas e movimentos vazios que apontam para algum descompasso na dramaturgia cênica, que mesmo revelando imperfeição, não arranha a sincera e vital interpretação de quem tem a coragem de expor a extensão da sua dor.