Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (20/1/2016)
Crítica/ “Brimas”
Ester e Marion conversam na cozinha, preparando
os quibes que serão servidos no velório que transcorre fora das vistas da
plateia. Uma judia, outra católica, chegaram ao Brasil muito jovens, vindas do
Egito e do Líbano. Unidas pelas dificuldades de sobrevivência e pelas
diferenças culturais e religiosas, transformaram a cozinha em território de
convergência de tolerância e amizade, ponto de encontro no novo país que as ajudou
a alimentar suas novas vidas. As “brimas” (primas pronunciada com sotaque árabe)
que assam tabuleiros de salgados para sustentar a permanência no lugar que as
acolheu e as famílias que criaram, convivem no plano doméstico com diferenças
culturais e memórias de diásporas. A comida, como expressão de afeto, une o que
se separou pela fome das guerras de desunião e preconceitos. A narrativa
singela das atrizes Beth Zalcman e Simone Kalil é inspirada em suas avós e nas
lembranças agridoces de vivências reais, que a iminência da morte revalida como
passaporte que libera fronteiras. As atrizes-autoras capturam essas vozes do
passado para sancionar o presente e evocar as dificuldades da travessia para celebrar
a chegada. A manipulação do alimento deixa de ser tarefa cotidiana para adquirir
a função simbólica de manter tradições e encontrar outros significados para
sentimentos interrompidos. Das línguas restam o sotaque e a gramática emocional
de saber que em árabe não existe o verbo ser, senão nos tempos passado e
futuro. Da imigração fica a sede insaciável de beber água por aqueles que não
conseguiram ultrapassar o mar. Na direção harmoniosa e delicada de Luiz Antônio
Rocha o espaço se abre para uma conversa na cozinha, em que vida e morte são
embaladas pelo humor de comadres e solidariedade de parentes. A cenografia de Toninho
Lôbo, que não escapa à óbvia imagem de malas, surpreende nos adereços.
Transforma os tabuleiros-assadeiras em delicados ícones de religiões que presos
à parede compõem quadro referencial de unidade ecumênica. A dupla de atrizes
marca com gestuais e vozes, que caracterizam origens e personalidades, as
diferenças que Ester e Marion aproximam pela mútua admiração. Simone Kalil, com
figurino severo, dá tratamento carinhoso a libanesa. Beth Zalcman, com figurino
colorido, veste a egípcia com humor solar.