Crítica/ “Cara de
fogo”
O alemão Marius von Mayenburg distende um
universo familiar aos extremos de seu esfacelamento. O pai é um obsessivo
leitor nos jornais de casos de assassinatos de prostitutas. A mãe, uma mulher
indiferente e falsamente conciliadora diante da desagregação do seu entorno. A
filha vive uma sexualidade perturbadora
e o irmão responde aos desajustes com atitudes incendiárias. Esse quadro
expandido de relações exacerbadas, se reveste pelo acúmulo de situações, em
crescente e previsíveis desdobramentos, num grand
guignol (show bizarro francês do
século19) dramático. A exposição do comportamento se sobrepõe ao adensamento da
dramaturgia, entrecortada por cenas curtas e diálogos recorrentes. O eixo
narrativo oscila em movimentos pendulares entre a decomposição cultivada pelos
membros da família e o destrutivo percurso até a queima total. Há algum
maniqueísmo na caracterização dos conflitos, apresentados como veículos de impacto
de atitudes incomuns em série. A direção
de Georgette Fadel estabelece ambientação ruidosa para a explosão de painel de
imagens sem muito detalhamento. A tensão que paira na superfície, é editada em
cortes secos na sequência de fotogramas cênicos, em ritmo expositivo que vence
a redundância do entrecho e o desgaste narrativo. A montagem se recria a cada passo,
utilizando truques teatrais que ativam a atmosfera e carnavalizam seus efeitos.
A cenografia de Aurora dos Campos, confinando o espaço a uma angulação
claustrofóbica, amplia, por inversão, as pulsões dos personagens. A luz de
Tomás Ribas é decisiva, não só na ambientação, como elemento coparticipante na construção
dramática. Do uso de espelho como refrator de impulsos sexuais a claridade
mortiça de velas na confissão de culpa, a iluminação complementa a estampa que
desfigura a vida doméstica. A destruição desse núcleo se manifesta pelo uso
metafórico de ferramentas, que ensaiam aparafusar aos corpos outras conformações
emocionais. Do que a diretora não se
desviou foi da intrigante tradução que adota um tratamento na segunda pessoa
para as falas do pai, e da forma como inflexiona as palavras da mãe. Isaac
Bernat, apesar da maneira postiça a que o pai foi levado a falar, fica no plano
mais naturalista de atuação. Mesmo com as entradas intempestivas e barulhentas do
vai e vem familiar, o ator permanece coerente com a equidistância do personagem
ao que se passa a sua volta. Soraya Ravenle, carrega nos erres e na
explicitação das palavras, além de entoar canção e desenhar gestos, numa
apropriação da existência frustrada, que resulta na maternidade alienada. Julia
Bernat aprisiona na sua figura de adolescente os sentimentos movediços da
garota que experimenta descobertas como sensações perigosas. Davi Guilherme
percorre com igual corrente de emoção o descolamento do real, em interpretação
dedicada, mas de força compactada. A Alexandre Barros resta o papel secundário
do namorado bronco.