quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

Temporada 2016

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (27/1/2016)

Crítica/ “Os realistas”
Retrato de mistérios domésticos

Os dois casais da narrativa de Will Eno vivem seus conflitos com o realismo que o título promete e a ação desmente. Vivendo em uma cidade pequena, os Silvas, de sobrenome e existências comuns, se encontram no quintal de um deles, iniciando imprevisível aproximação. As pausas que se abrem entre a incomunicabilidade de Júlia e João são contrabalançadas pela loquacidade de Pônei e José, que se confundem entre doenças degenerativas, agressividade rotineira e mistérios domésticos. Os personagens se tocam por suas arestas, ameaçando mudar de posições numa triangulação apoiada por diálogos tão evasivos quanto os seus desejos suspensos. A dose de realidade que imprimem a seu comportamento é  insuficiente para sustentar a atmosfera subjetiva que o autor tem a pretensão de identificar com a dramaturgia de Tchekhov. Distante do autor russo, próximo do realismo psicológico, Will Eno dilui, em entrecho que evolui pesadamente, a carga dramática que persegue o embate, desfigurado em  abalos redundantes e perturbações reiterativas. O diretor Guilherme Weber adaptou situações típicas da origem geográfica para facilitar a circulação entre fronteiras. A tradução é a primeira dificuldade na procura da melhor sonoridade para Joneses (Silvas) ou para identificar atividades profissionais ou animais de climas frios. A cenografia de Daniela Thomas e Camila Schmidt acentua, com o painel fotográfico de fundo e toras de madeira suspensas, vaga imagem que lembra ambientação para montagem tchecoviana. A atmosfera americana, presente não só nas atividades e sensibilidade dos casais, carimba a direção por mais que procure escapar da tatuagem indelével. A ambientação cenográfica é pouco explorada pela iluminação de Beto Bruel, mais explosiva do que sutil, como sugere a seriação dos troncos e a transparência do painel fotográfico. Os figurinos de Ticiana Passos vestem os atores à americana. A trilha sonora de Guilherme Weber faz pequenos comentários à ação. Guilherme Weber impulsiona o emperrado texto na sofisticada interpretação do quarteto do elenco. Os atores adotam de maneira vigorosa e refinada papéis que escapam com facilidade à possibilidade de projetá-los em sua integridade. Voláteis, sem razões que os justifiquem e rostos que os facilite ver, os personagens sobrevivem de imagens lembradas e monólogos melancólicos. Os intérpretes constroem a suas próprias percepções dos sentimentos que exprimem, num conjunto indivisível de alta qualidade. Fernando Eiras se movimenta pelas franjas das ausências e silêncios de João, em detalhada e criteriosa exploração de uma zona obscura que confere maior relevância ao personagem. Mariana Lima não permite que a incansável Júlia se reduza ao  elo propulsor da trama, revestindo-a de petulância, entre o amargo e o fugaz de figura desordenada. Emílio de Mello ultrapassa os descompassos físicos e verbais do falante José, transmitindo minúcias contra a facilidade das evidências. Debora Bloch, em atuação irretocável, transfere o  eixo periférico em que gravita Pônei para o centro irradiador da montagem.