Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (3/2/2016)
Crítica/ “O
capote”
Uma vida que se perde na procura de abrigo |
Akaki é um funcionário de repartição em São
Petersburgo, em função dispensável e que vive na miséria de dias burocráticos e
com frio, contra o qual o velho casaco puído não mais o defende. O estado de
desamparo desse homem, reduzido à necessidade de um novo abrigo, se torna ainda
mais patético ao ter de economizar por meses o dinheiro que agrava suas
privações. O conto de Nikolai Gógol sobre alguém de aspecto insignificante e
existência humilhante o confunde com a roupa que, mesmo vestida, não o abrigará do clima hostil que o
levará à nudez da morte. Na tradição literária russa do século 19, a narrativa
de Gógol tem aquele clima melancólico em contraste a quadro social, que ao se
encontrarem na imagem fantástica que o autor atribuiu ao personagem, eterniza a
posse definitiva do capote. Na adaptação de Drauzio Varella e Cássio Pires,
Akaki não é o narrador da própria história, contada por dois coadjuvantes que assumem
o papel de condutores da ação. As intervenções desses saltimbancos da palavra
roubada têm maior peso, valorizando o ambiente exterior que atua sobre o
interior do copiador medíocre. A atualização temporal da trama sugere os
narradores como bufões publicitários, vendendo a fantasia de um consumo inútil.
Numa inversão de rumo, os adaptadores desumanizam Akaki, sem atingir a dimensão
social que, aparentemente, gostariam de projetar. Empobrecem o personagem ao
criar superestrutura descritiva e acrobática,
de idas e vindas, que confunde e esgarça o núcleo dramático. A diretora Yara de
Novaes comprou essa dispersão autoral, acrescentando-lhe embalagem ainda mais
diluidora. Os atores-narradores são responsáveis por se manter em foco e ativos
como se fosse preciso ratificar suas presenças e apagar a do verdadeiro
anti-herói. A cenografia de André Cortez é outro elemento dispersivo, que
sublinha e ilustra, oferecendo pouco estímulo a um olhar mais depurado. Marcelo
Villas Boas e Rodrigo Fregan sustentam com composições físicas irregulares os
fanfarrões da história. Rodolfo Vaz, em interpretação plana, de pouca variação
e modesta em recursos, adota desempenho secundário atribuído a Akaki nesta
versão frustrada.