Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (13/2/2016)
Crítica/ “Missa
para Clarice”
A celebração da palavra sacralizada |
A seleção de textos de Clarice Lispector,
reunidos sob a forma de missa por Eduardo Wotzik, sacraliza o humano como comunhão
de sentimentos levados ao infinito de seus mistérios. Neste estudo cênico, em
que a palavra é reza de “susto e angústia” e a voz, meditação sobre a verdade
para além do escuro, o ator celebra, com duas acólitas e música de Gorecki, as
dúvidas que assaltam a autora e inquietam o diretor. O ritual místico de que se
apropria o literário profano procura na oração que eleve, no templo do palco, a
consciência de viver. A edição, texto final, direção e interpretação de Eduardo
Wotzik ambicionam capturar na obra de Clarice o sagrado da existência em sua
conflitante e mútua negação. Refletem ainda a ansiedade de encontrar na
criação, possibilidades de não sucumbir a fatalidade dos sobressaltos e as
alegrias sem pudor dos desejos. A encenação indica, na adoção genuína das
incertezas, a tentativa de especular por respostas e investigar os espantos.
Com estrutura da missa católica, a envolvência da plateia na cerimônia teatral
segue os rituais religiosos, com quebras narrativas que equilibram o tom solene
da sequência formal. As atrizes Cristina Rudolph e Natally do Ó são as
responsáveis por essas intervenções, que buscam aproximar, com alguma
artificialidade, o espectador do fiel. A direção de arte de Analu Prestes, e
especialmente a iluminação dos irmãos Mantovani, criam ambiência de culto na
sugestão das vestimentas religiosas e na evocação da luminosidade de imagens
sacras. Na sua liturgia teatral, Wotzik
não economiza no aproveitamento do material selecionado, usando de fragmentos
de contos e crônicas e de narrativas curtas, em triagem mais emotiva do que dramática.
Muito do que assiste, parece se confundir com o depoimento pessoal do ator sobre
o ato de estar em cena neste impreciso momento do teatro. A necessidade de
explorar uma certa inadequação, a que os textos se referem, é exposta num caudal
que não permite ajustá-lo ao tempo cênico. Não por outra razão que o final
ameaça se completar várias vezes para, efetivamente, se concluir pela simples saída
do ator de cena. Mas é a mesma identidade que Eduardo Wotzik estabelece com a
fecundidade da obra de Clarice, a maior
força expressiva deste estudo-missa. O intérprete se mostra um devoto da
palavra escrita, percorrendo os escaninhos das intenções e os meandros dos
enigmas, distante de ênfases e da espiritualidade efusiva. Com atuação sincera,
conduz, reflexivamente, a pregação da escritora pelo sagrado da descrença.