Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (9/12/2015)
Crítica/ “A santa
Joana dos matadouros
Brecht veste camiseta do distanciamento |
Joana, militante de grupo de ajuda, professa a fé
como forma de exercer a bondade e intervir na disputa entre patrão e empregados
na indústria de carne na Chicago, em plena crise de 1929. Ao tentar aliviar a
miséria dos trabalhadores, decorrente do desemprego, esbarra em Mauler,
poderoso dono dos matadouros que produz carne enlatada. A jovem inocente, numa
reprodução da Donzela de Orleans, é submetida pelo voraz capitalista a
reconhecer que os pobres são maus e usada pela organização religiosa a que pertence para desvair a atenção da fome e da
falta de trabalho. A falha da greve, como pressão para reabertura da fábrica de
Mauler, fechada pelas negociações com a concorrência, leva Joana a morte,
consciente de que o mundo não se modifica sem violência. Ao consolidar suas
teses, políticas e estéticas, neste texto repleto de referências, históricas e
literárias, Bertolt Brecht destaca a luta de classes como forma do homem
explorar o homem. E demonstra que está condenado a destruir-se ao tentar
superar as condições do jogo em que alguns estão no alto, e muitos por baixo. À
complexidade desta narrativa, estilhaçada em cenas múltiplas de um contexto político
e social delimitado, se acrescenta a expectativa de que a plateia responda, reflexivamente,
ao distanciamento da ação. A montagem de Marina Vianna e Diego Liberano atende
às técnicas fabulares brechtianas, matizando o discurso político em surpreendente
discurso visual. A dupla de diretores transpõe a eclosão dos quadros para a
didática unitária das falas, que de modo direto e sem oscilações dramáticas,
alcança a variedade de vozes no seu determinismo quase niilista. A direção de
arte de Bia Junqueira assume tal complementariedade na encenação, que a sua
assinatura se expande muito além da cenografia. O uso de centenas de camisetas
que, desde o início, quando forram o palco, até aderir aos corpos dos atores
como uma malha que troca as peles e exibe as nervuras da carne, adquire força
simbólica que dinamiza os planos narrativos. Ao lado da iluminação de Paulo
Cesar Medeiros, que focaliza indiretamente a plateia, como a sugerir adesão participativa,
o cenário de Bia Junqueira conclui com engradados, quadrilátero de luz e moventes
ganchos sanguíneos o impactante visual. Essa ambientação arrebatada se mostra como
fratura em decomposição, que o elenco, com a irregularidade de um conjunto
heterogêneo, acaba por harmonizar na coletivização interpretativa. Adassa
Martins procura o olhar do espectador para a sua intervenção inicial. Leonardo
Netto projeta o cinismo dos negócios. Vilma Mello alcança o tom no grito
desesperado da viúva. Luiza Arraes, uma Joana inexperiente, dá o recado no
final. Sávio Moll, Gunnar Borges, Leandro Santana e João Velho contribuem com
pesos variáveis no balanço das atuações.