Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (2/12/2015)
Crítica/ “Godspell”
O musical do início dos anos 1970 que trata com
espírito hippie-circense o evangelho segundo São Matheus prova, tanto tempo
depois de sua estreia, que suas canções ritmadas e letras de evocação bíblica
se mantêm atraentes. As diversas parábolas que transmitem os ensinamentos de um
Cristo convivendo com jovens palhaços-malabaristas de circo bíblico com
conotação de paz e amor, revivem uma fase de musicais lastreados pelo
desbravador “Hair”. Quatro décadas depois, “Godspell” ganha selo de registro de
época e validade na trilha sonora e ainda resiste a novas encenações. A
montagem de João Fonseca é a comprovação de que a dramaturgia de Stephen Schwartz
e a música de John Michael Tabelak sobreviveram ao tempo, e que respondem com
vitalidade a versão renovada e bem cuidada. E essa lufada rejuvenescedora é
apresentada com recursos básicos de produção, com elenco ardoroso na sua
juventude profissional e inventivo nos jogos cênicos. Os elementos cênicos são
pouco mais do cubos de madeira que a movimentação constante do elenco
transforma em objetos manipuláveis no compasso das brincadeiras exemplares. Os
malabaristas se transformam em grupo de garotos animados pela palavra do
mestre, a quem cultuam com o descompromisso e o viço da idade. Na versão de
João Fonseca e Rainer Tenente, a integridade original está mantida, mas a agilidade
com que alarga os limites do picadeiro para a amplitude da efusão dos apóstolos
juvenis, deixa em plano secundário os efeitos corporais do circo exibicionista.
Com gírias próprias e críticas oportunas, a adaptação chega a plateia com
franca comunicabilidade, sem perder a coesão narrativa. A coreografia de Victor
Maia acompanha a marcação precisa das cenas, sempre em ação contínua que não
deixa espaços vazios. O quinteto de músicos – Alexandre Queiroz (teclado e
regência), Gabriela Alkmin (teclado), Pedro Mota (guitarra e violão), Alana
Alberg (baixo) e André Guerra (bateria) – dá bem mais do que conta do recado. É
um conjunto que se destaca na qualificada sonoridade do espetáculo. O figurino
de Caio Loki equilibra a inspiração riponga
com roupas atuais. O elenco de 22 atores atua como um coro harmonizado pela
garra de desempenhar o papel de acólitos de uma celebração festiva. Com vozes
trabalhadas e vigor corporal têm oportunidades semelhantes de solos, ainda que
a melhor participação de cada um, está na capacidade de atuar sob a base sólida
do coletivo. Por força do incontornável protagonista como Jesus, Léo Bahia lidera
com seu aspecto bonachão o afinado coral. “Godspell” serve também a outra
parábola da produção de musicais. Com visíveis restrições de orçamento, longe
do falso brilho de cenários e figurino, no rigor de elenco empenhado e no
visível cuidado na técnica vocal e interpretativa, esta montagem demonstra que
há formas mais simples e criteriosas de encenar musicais.