Retrospectiva do Ano Teatral
Kiss me Kate |
Este ano não foi igual aquele que passou. Foi pior. Os
mecanismos de produção que já vinham se mostrando ultrapassados, foram
atingidos pela crise econômica e pelos respingos da Lava-Jato. Os editais da
Petrobras e da Eletrobras desapareceram, a Funarte confessou a falência de seu
modelo de fomento, a presença estadual que era restrita, se anulou, restando a
lei municipal que tem um caráter mais distributivo do que criteriosamente seletivo.
A saída de Beatriz Radunsky da programação do Espaço Sesc deixa a dúvida sobre
a permanência de uma política de ocupação arrojada e diversificada de
linguagens. Em alguns casos, esse enxugamento acentuou tendência, que parece se confirmar a cada
ano, de um certo voluntarismo, em que grupos mais ousados ou atores-produtores de carreira emergente se arriscam, com a cara e a coragem e com poucos recursos, a se lançar à cena pelo desejo de
dizer algo que lhes parece essencial, ou experimentar caminhos que ainda não
sabem aonde os leva.
Caranguejo Overdrive |
Caranguejo Overdrive, texto de Pedro Kosoviski e direção de Marco
André Nunes sintetiza, exemplarmente, esse momento da cena carioca. Num fluxo, de tempos e formas, a
montagem não dá trégua à estimulação sensorial. Da exposição direta de um ator
falando ao microfone ao desenho traçado diretamente nos corpos, o espaço de ver
e ouvir se decompõe em cenas estilhaçadas, capturadas como possibilidades de
sensações visuais e auditivas intensas. A sensibilização é o meio através do
qual, autor e diretor interpretam referências histórias, apropriam-se do jogo
político e se relacionam com o contemporâneo. A brutalidade da pobreza de ontem
reverbera nas citações a de hoje em diálogo entrecortado e intermitente entre
estéticas contrastadas e falências sociais.
Puzzle (D) |
Estamos
Indo Embora, estreia de texto e direção de Luiz Felipe
Reis, surpreende pelo domínio de meios expressivos e depuramento na execução, em
corajosa tomada de posição sobre a ação do homem nas transformações climáticas.
Utiliza uma interseção de linguagens que converge para uma área para além de códigos estabelecidos. Pahoma, segunda direção teatral do
coreógrafo João Saldanha, texto e encenação de Saldanha, se mostra em
permanente movimento, em que teatro e dança são meios dos quais se serve para
ir na direção de “um lugar sem lugar dos nossos sonhos, as utopias”. O Tempo
Festival apresentou Puzzle (D), a
última parte da tetralogia de Felipe Hirsch visto na Feira do livro de
Franckfurt há três anos, que desmonta as peças do quebra-cabeças de um país
através de vozes furiosas e dissonantes, que acabam por formar um quadro de
poética contundente.
projeto brasil |
A Companhia Brasileira de Teatro
circulou por propostas cênicas extremas, sempre com muito vigor e força
transgressora. Em projeto brasil,
debruça sobre a instabilidade dos significados de uma nacionalidade e dos
fragmentos de uma teatralidade para sondar percepções e explorar rastros de
emoções. Já em Krum, Marcio Abreu,
diretor da companhia curitibana, estabelece vigoroso território cênico para que
os corpos exponham ”máscaras de sofrimento, que um dia serão uma espessa camada
de cinza”. Salina, encenação dos
diretores Ana Teixeira e Stéphane Brodt, mergulha na ancestralidade da África
profunda, desvendando imaginários, sacralizando o humano. Poema heroico,
confirma a fidelidade do grupo Amok a um teatro étnico-antropológico.
Mantenha Fora do Alcance do Bebê |
Dois textos se destacaram. Diogo Liberano,
autor e ator de O Narrador, confronta a literatura dramática com o
despojamento do jogo cênico. Só, diante de folhas de papel que após a leitura
são jogados ao chão, destila a emoção de uma amizade perdida por
inevitabilidades da existência. Silvia Gomez, em Mantenha Fora do Alcance do Bebê, expõe o absurdo da realidade em
sua lógica desordenada, em narrativa com diálogos afiados e atmosfera surreal,
denunciando a padronização da natureza animal dos instintos.
O teatro realista recebeu, tanto em Race, quanto em Abajur Lilás, transcrição nos próprios termos do gênero. A psicologia
social do drama de David Mamet foi recriada pelo diretor Gustavo Paso com a racionalidade
expositiva de uma denúncia. Enquanto o realismo político de Plínio Marcos
reencontrou a sua contundência física e verbal na direção de Renato Carrera.
Meu Saba |
A cenografia de Bia Junqueira, nos três trabalhos
vistos nesta temporada, se revela de tal modo participante da cena, que pode
ser considerada uma coautoria com a direção. Em Meu Saba, constrói um percurso terroso e desértico que aponta para
a arma que assassina a tolerância. Em Santa
explode o espaço do Teatro do Tom Jobim com movimentos oníricos de um cenário
que abriga enevoada relação de um casal. E em Santa Joana dos Matadouros insufla com o uso múltiplo de camisetas a
troca de pele da tradição brechtiana.
Os musicais, ao que parece, ficaram imunes à
falta de patrocínio, a julgar pela quantidade de estreias que se espalharam
pelo ano. A quantidade prejudicou a qualidade, e foram raras as criações
nacionais que escaparam ao biográfico e ao convencional. Mas foi, exatamente da
convenção, que a obra de dois gênios (Cole Porter e William Skakespeare) produziu
a melhor comédia musical de 2015. Mais uma produção de qualidade e rigor da
dupla Charles Moller e Claudio Botelho, Kiss Me Kate se destacou com competência
num mercado desordenado.