Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (30/9/2015)
Crítica/ “Abajur Lilás”
Escrita em 1969, “Abajur lilás” forma com “Dois perdidos numa noite suja” e “Navalha na
carne” o núcleo duro da dramaturgia de Plínio Marcos. Fotografias em alta
resolução de um universo à margem, em que a miséria humana e conflitos sociais se
manifestam em linguagem direta e ríspida, esses textos resistem ao tempo pela
sua força implosiva. “Abajur lilás” marca
diferenças em relação às narrativas do mesmo período, pela caráter,
reveladoramente político, que Plínio imprime a áspera convivência de
prostitutas exploradas por um cafetão. As mulheres, submetidas ao poder de quem
as tiraniza, são pressionadas, sob tortura, a delatar a responsável por um ato
de revolta contra a ordem do prostíbulo. A violência, antes de ser vivida como
metáfora política, é mostrada na sua dimensão social, em que um quadro hiper-realista
de agressões verbais e falência moral se desenha como provocação. É clara a
intenção de desacomodar o espectador e incitá-lo a reagir, até mesmo pela repulsa,
ao que parece chocante pelo seu realismo. O propósito de Plínio Marcos se
mostra eficiente até os dias nada censurados de hoje, quando o público,
confrontado com diálogos que não economizam palavrões e expõem situações
afrontosas, ainda deixa o teatro, agredido na sua sensibilidade. E,
efetivamente, o autor não se limita na utilização desses recursos, que se
revelam a razão e fundamento de uma obra que sobrevive na medida dessas
características tão demarcadas por traços borrados. Renato Carrera reforça o
acento realista das cenas com uma direção que dilata o clima tenso ao ponto de explodir
em suores, babas e palavras gritadas. A encenação é expandida tal como os
gestos dos personagens, que explicitam em movimentos reais, atitudes íntimas,
que se deixam ver como ação natural. A primeira cena e as passagens de tempo criam
com realística projeção, uma atmosfera densa que abre espaço ao desnudamento da
ação dramática. Carrera administra com segurança a base naturalista da trama,
com a construção de narrativa cênica delineada num fio desencapado na iminência
de estourar num curto circuito. O ambiente, sempre próximo da combustão, é de
uma crueza sem disfarces no cenário de André Sanches e na iluminação de Renato
Machado. As telhas translúcidas e os baldes e urinol de serventia às
intimidades invadidas, ganham significação da luta emocional perdida desde
sempre. A preparação corporal de Felipe Koury é determinante na virulência da
cena de tortura. A direção musical de Alexandre Elias determina, com precisão,
as interferências sonoras. Higor Campagnaro resolve pela caracterização
mascarada e pela composição física o papel sombrio do torturador impotente.
Eber Inácio estabelece com pequenas flexões a inconstância do cafetão. Laura
Nielsen, Larissa Siqueira e Andreza Bittencourt não se restringem a coragem da
exibição, mas demonstram a integridade de intérpretes que deixam as
personagens em rascante exposição.