Crítica do Segundo Caderno
de O Globo (27/9/2015)
Crítica/ “In extremis”
Vozes subterrâneas do universo de Oscar Wilde |
O encontro e as expectativas estão postos em outro tempo e
redimensionados pela morte. Não apenas revivem um fato, mas evidenciam o que no
passado era puro jogo, e que agora é memória reveladora. ‘In extremis”, do
inglês Neil Bartlett, se baseia em provável consulta do escritor Oscar
Wilde a uma cartomante, dias antes de seu julgamento a dois anos de prisão por
“cometer atos imorais com diversos rapazes”. A impostura da profecia enfrenta o
temor de saber aquilo que poderá vir a seguir, ambos os sentimentos
dissimulados pela astúcia da manipulação e pelo receio do destino pressentido.
Neste minueto de palavras mascaradas, as vozes interiores falam em outro tom,
impulsionadas pela música da ambição e pelos ecos da insegurança. Bartlett
criou situação, vivamente fundamentada no universo do autor de “De
profundis”, da qual emergem cinismo e decadentismo, ironia e hedonismo.
Contrapôs à estética e à vida de Wilde, uma embusteira que mergulha nesse mundo
como alguém que conhece a hipocrisia e os ardis de seu funcionamento. O texto,
conciso na apropriação do literário como linguagem cênica e do existencial como
expressão de sensibilidades, mantém diálogo refinado entre os dois
planos. Ao mesmo tempo que exige uma audição depurada, a narrativa propõe, no
seu aparente e convencional dualismo, a recepção explodida e arrebatada de
vozes subterrâneas. O diretor Bruno Guida, que também assina a cuidadosa
tradução, interpretou esse circuito de dissonâncias, integrando a potência da
palavra ao impacto da imagem. O cenário de Flávio Tolezani, restrito a duas
cadeiras-tronos e adereços, e envolto na iluminação oblíqua de Aline Santini, é
encorpado pelo figurino de Daniel Infantini. Repleto de brilhos e plumas
gastas, complementado por bijuterias opacas e cabelos desgrenhados, o visual
dos atores barbados conduz a um espaço decadente e a uma zona de contornos
impalpáveis. O deslize do diretor talvez possa ser avaliado pelo tratamento,
algo místico que pede emprestado à quiromancia, e pelas atuações inspiradas na
bufonaria. Flavio Tolezani (Oscar Wilde) escapa, com maior interiorização e com
pausas inquietantes, ao expansionismo da composição de Daniel Infantini (a
cartomante). Enquanto Tolezani projeta a ansiedade do escritor à beira do
veredito, entrecortada por frases de efeito, Infantini joga para a plateia à
procura de aplainar ambiguidades.