Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (20/9/2015)
O que ressalta em “Por amor ao mundo”, título de
um dos livros da alemã Hanna Arendt e do texto teatral de Marcia Zanelatto, é o
exercício do pensamento como ato político. Na prática intelectual desta filósofa
judia, que viveu as consequências do totalitarismo nazista, reflete-se, sob a
disseminação de atos desumanos e a banalização do mal, o espaço existencial desocupado
de pensamento, um vazio que torna possível manifestações de violência e de atrocidades.
Marcia Zanelatto construiu uma narrativa para desvendar os caminhos, pessoal e intelectual,
que levaram Hanna Arendt a interpretar o seu tempo para além dos atos marcados
pelo momento histórico. A autora contrapõe a jovem aluna, e também amante, de
Heidegger, ao seu fiel e devotado marido por 30 anos, Heinrich Blucher. A presença
desses homens em sua vida é apresentada com pretexto para tocar nas ligações do
filósofo com o nazismo, e para situar a convivência com o pacato Blucher ao
emigrar para os Estados Unidos. É através da correspondência com a escritora
americana Mary McCarthy que surge, para além da pensadora, a mulher na troca de
receitas e de trivialidades do cotidiano. A repercussão do artigo publicado na
New Yorker sobre o julgamento do carrasco Adolf Eichmann pode ser acompanhada,
numa conversa de Hanna com uma garota cheia de certezas, numa viagem de trem. Com
esta envolvência dramática simples, sem didatismos e com bem medida
abrangência, Marcia Zenelatto afirma o pensar como síntese da locução substantiva
da autora de “A condição humana”. A depurada transposição dramatúrgica
consolida-se numa citação: “A única forma de sobreviver a uma história que não
se pode nem esquecer, nem perdoar, é narrando-a”. Isaac Bernat procura na
encenação uma linha entre o caráter reflexivo e a atmosfera expositiva, que se
mostra mais desenvolta ao ilustrar do que ao buscar significados. Há um certo
lirismo invade a cena, como na coreografia que abre e encerra a montagem,
comprimindo em movimentos escapistas o que as palavras reproduzem em tensionamento.
A tendência à formalização dos meios expressivos, fixada no desenho cenográfico
de Doris Rollemberg e na luz de Aurélio de Simoni, determina o desempenho frio
e equidistante do elenco, que transmite uma emoção contraída. Mesmo na cena
final, quando as atrizes, de mãos dadas, projetam um sereno entendimento, falta
o detalhamento do percurso. Eventuais ponderações não comprometem a atuação de
Kelzy Ecard, uma Hanna Arendt de arestas aparadas, mas com luminosidade.
Carolina Ferman empresta, em intervenções corretas, a vivacidade de Mary McCarthy e da companheira
de viagem de Hanna. Michel Robim se desdobra como dançarino e ator.