Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (2/9/2015)
Crítica/ “Amargo
fruto”
De um modo um tanto transverso, “Amargo fruto”
valoriza o que é básico no gênero: a qualidade musical. Em outro quesito, fica
distante do que deveria ser um elemento essencial: a integração da música com a
dramaturgia. E a insistência na linha biográfica deixa pouco espaço para a
originalidade. Para contar a vida de Billie Holiday, Jau Sant’Angelo e Ticiana
Studart reuniram material de pesquisa que acompanha os acontecimentos de uma
existência que inclui estupro, drogas, rejeição e preconceito. O repertório da
cantora ilustra, em monólogo musical, a sequência trágico-amorosa em deslocada
sonoridade biográfica. Os fatos foram compilados com evidente detalhamento, mas
não receberam tratamento dramático para ganhar fôlego e romper com a narrativa
convencional de vida e morte. As canções, nesta estrutura de quadros
alinhavados, são destacadas como em um recital, em que a música adquire
autonomia expressiva sobre a frágil sucessão temporal. Ticiana Studart, também
diretora, reforça esse descompasso com a alternância da Billie cantora,
desfiando dramaticidade vocal, com a Billie personagem, lutando para dar
veracidade aos diálogos. As marcas são previsíveis e se perdem na largura e
profundidade do palco do Carlos Gomes, que o cenário de Aurora dos Campos deixa, espacialmente,
ainda mais solto e sem volume. O microfone, imagem central e sintética que
ocupa o proscênio, é o símbolo desta montagem, na qual emerge absoluta e apenas,
cantando, a intérprete de clássicos e a figura de voz rascante da Lady Day dos
clubes de jazz e das dores de amor. Seria o bastante para dimensionar a força de
quem transmitia o fraseado desafinado da vida com dicção musical impecavelmente
lancinante. Mas há que reafirmar as cores dramáticas, e insistir em acentuar o
trágico, colocando em choque o poder de uma voz e do grupo de músicos, que alcançam
alto nível de execução, com sua
discutível encenação. Outro dos indícios de como o espetáculo está fraturado,
pode ser verificado nos figurinos. Enquanto Lilian Valeska encarna Billie com
vestimentas que evocam as fotos da cantora e o conjunto musical está
sobriamente de terno, os atores Vilma Melo e Milton Filho são submetidos a
improvisadas roupagens no desenho partido de Marcelo Marques. Vilma Melo, com
maiores oportunidades do que Milton Filho, se equiparam no desempenho de seus
personagens-escada. “Amargo fruto” encontra os melhores atributos quando se
projeta, tão somente, como recital. A direção musical e arranjos de Marcelo
Alonso Neves são de criteriosa
sensibilidade, revisando clássicos com sutilezas sonoras. Os músicos do conjunto jazzístico – Berval
Moraes (baixo acústico), Emile Saubole (bateria), Gabriel Gabriel (saxofone) e
Rodrigo de Marsillac (piano) – favorecem com autoridade a cantora Lilian
Valeska. Com pouca segurança como atriz e muita presença como cantora, Valeska empresta
seu poderoso timbre ao fraseado peculiar
de Billie Holiday, sem qualquer pretensão de imitá-la, mas de trazer a memória
auditiva de uma voz arrebatadora.