Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (7/10/2015)
Crítica/ “Projeto
Brasil”
A ousadia está na tentativa de falar do Brasil de
agora, no momento em que se vivem as contradições de sempre. São usadas
palavras recolhidas para buscar significado para tudo aquilo que já foi dito,
fragmentos de discursos para lembrar, mas falados como se fossem para esquecer.
Tudo está instável: o começo no fim, o presente sem história, a velocidade sem
narrativas. A Companhia Brasileira de Teatro de Curitiba se debruça sobre uma certa
geografia humana que experimenta o seu tempo, no que a atinge no espaço das
dúvidas e a desorganiza nas periferias do pensamento. Vozes entrecortadas, música
interpretada em linguagem libras, corpos desequilibrados, performances
dissonantes, os recursos variam na dramaturgia coletiva, lançados como
impressões em permanente desmonte. Uma fala direta em espanhol ganha destaque
quando restam apenas vários microfones no palco vazio. O debate parlamentar sobre
novas formações familiares é ilustrado por beijos entre atores, que se estendem
à plateia. O homem que se diz incapaz de dar conta de “tudo muito”, começa a
falar, de modo entrecortado, da persistência do medo até explodir na fluência do
imaginário. Estilhaços de dramas e cacos de entrechos, instalações luminosas e
construções sonoras, as cenas se sucedem independentes e desarrumadas, numa
formalização em que as imagens procuram desilustrar a palavra, desfazê-las em pedaços
de teatralidade e confirmá-las como rastros de emoções. Para tanto, corpos nus revelam
hipocrisias e movimentos animais, a força da violência, numa sensibilização dos
efeitos, às vezes de maneira explícita, de outras, contrastada. A fricção de
tantas possibilidades é o que o diretor Marcio Abreu experimenta neste caminho
de que não se conhece o ponto de chegada. A coragem de encenar discursos como
do ex-presidente do Uruguai José Mujica e da ministra da Justiça da França,
Christiane Taubira, e de lançar perguntas, que estão longe de respostas,
demonstram a inquietude da Companhia por sondar outras percepções. É uma
investida em meios expressivos, ainda sem contornos delineados, que tateiam estímulos
dispersos de um universo amplificado. O impacto visual que provoca a cenografia
circular de Fernando Marés e a iluminação de Nadja Naira e Beto Bruel, tem perfeita
correspondência na intensidade dos movimentos de Marcia Rubin. A sonoridade do
músico e cantor de Felipe Storino acrescenta
elementos decisivos no projeto estetizante desse Brasil desfocado. O elenco
responde com garra física e destemor interpretativo às exigências corporais e
vocais de larga extensão. Nadja Naira com menores intervenções, compartilha o
prolongado beijo coletivo de palco e plateia. Giovana Soar surpreende no canto
silencioso de “Um índio”, de Caetano Veloso, desnuda-se nas dores da agressão,
e reproduz o vazio de um final de festa. Rodrigo Bolzan domina a cena em cada
uma das suas participações, mantendo-se absoluto ao dar voz a uma análise política,
corpo à nudez de monólogo candente e atitude à constatação de que “vivemos um tempo do fim”.