Crítica do Segundo Caderno de O Globo
(21/10/2015)
Crítica/ “Nine –
Um musical felliniano”
Todas as mulheres em uma crise existencial |
Baseado no filme “8 ½”, de Federico Fellini,
transposto para o palco como “Nine”, tem no acréscimo dessa ½ fração numérica,
a medida da diferença que distingue a densidade no cinema da euforia no teatro.
A crise de criação de Guido Contini, que na tela transbordava o universo
marcante do diretor italiano, neste musical se concentra na trama, na qual as
mulheres de sua vida ganham relevância.
Se na tela, as figuras femininas se esfumaçam como lembranças, na adaptação ao
musical orbitam como causas da imobilidade do atormentado artista em falência
existencial. Ainda que sejam linguagens distintas, a do musical está submetida
a certas regras que condicionam o domínio da trilha sobre a ação, em especial
quando versão baseada em outra obra. Não se trata em “Nine” de reproduzir o
caráter felliniano do original cinematográfico, mas de atender a necessidade de
condensação em música de narrativa de imagens oníricas. A passagem é difícil e,
inevitavelmente, restritiva, mas a solução dos americanos Maury Yeston (música
e letras) e Arthur Kopit (texto) foi a de decupar o filme em quadros, editando
em canções a história simplificada. Ter assistido ao filme talvez provoque
reação dúbia diante do musical, pela relativa perda da atmosfera do original e pela
redução ao entrecho do que é imaginação poética. Mas são detalhes que aos olhos
daqueles que desconhecem o filme se tornam secundários e desnecessários à recepção
da comédia musical, em que as composições se integram com fluidez ao
envolvimento de Contini com variados arquétipos femininos. Ainda que as canções
não fiquem nos ouvidos, com exceção da mais famosa, “Voglio Bene/Be Italian”, cada
uma delas serve ao desenvolvimento dramático, funcionando com expressão própria.
Na fluente e sonora tradução de Claudio Botelho e na direção musical, regência
e nos arranjos competentes de Paulo Nogueira, o repertório soa complementar ao
texto e ao compasso ritmado dos diálogos. Charles Möeller desenhou a montagem
explorando as competências de um elenco bem selecionado. O espetáculo transmite
simplicidade, resultado de sofisticada e criteriosa construção, na qual a
cenografia funcional de Rogério Falcão, a iluminação eficiente de Paulo César
Medeiros, e a coreografia de Alonso Barros contribuem para a realização
afinada. Mesmo com o visagismo de Beto Carramanhos e o figurino de Lino
Villaventura destoando do refinamento dos demais meios, é nos atores que “Nine”
se revela fellinianamente legítimo.
Nicola Lama é um Guido Contini sanguíneo, que se equilibra com habilidades de
intérprete e cantor, entre o humor semelhante ao dos atores das comédias
italianas dos anos 1960, e o vigor do músico que enfrenta com bravura as
exigências de partituras complexas. Totia Meireles empresta a sua experiência
ao gênero como a produtora de filmes, destacando-se na cena do Folies Bergéres.
Carol Castro se mostra empenhada em dar corpo a Luisa Contini. Malu Rodrigues
ilumina a cena com sua beleza translúcida e voz límpida como a amante. Karen
Junqueira deixa menos visível a sedutora aparição da atriz que se recusa a
participar do filme ainda sem roteiro. Sonia Clara impõe sua figura elegante
como a mãe. Em papéis alternados, num coro de belos rostos, Letícia Birkheuer,
Ágata Matos, Camilla Marotti, Laís Lenci, Lola Fanucchi e Priscila Esteves
compõem um coletivo de sonoridade irretocável. Myra Ruiz, apesar da glamourização
da Saraghina, tem segura intervenção. O menino Luiz Felipe Mello, de 9 anos, o
Guidinho, é uma presença encantadora.