segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (4/10/2015)

Crítica/ “The pillowman”
Ambiente opressivo para construir múltiplas narrativas 

O texto do irlandês Martin McDonagh aponta para várias direções, todas elas dirigidas para costura dramatúrgica que conflui para uma escrita bem traçada. Aparentemente, trata-se de trama criminal, que logo se desfaz em drama psicológico, mas que se concretiza na identidade da criação com a vida. Um escritor de histórias perversas, através das quais se delineia a sua própria história e de seu irmão deficiente mental, é submetido a interrogatório policial para confessar mortes semelhantes àquelas que escreve. Em sessões torturantes, desvenda-se um enredo de crueldade e dominação, de brutalidade e morbidez, em múltiplas pistas desviantes que conduzem ao espaço da ficção que o autor-assassino-vítima-cúmplice quer preservar para além da morte. O depoimento à polícia conduz até a verdade, enquanto os contos revelam vivências reais e autonomia expressiva, capazes de justificar a existência e atenuar culpas. “The pillowman” é feito de narrativas, conflitantes e dispersas, que se encontram na invenção ficcional de quem busca a permanência da memória. Os diretores Bruno Guida e Dagoberto Feliz apostam em acentuar o clima sinistro e a atmosfera tragicômica, deixando de explorar os mecanismos dramáticos da requintada construção fabular. A dupla optou por caracterizações grotescas dos personagens e por composições bizarras do elenco, que não deixa de ser uma opção para facilitar a atenção da plateia para a subjetividade da ação e quebrar o ritmo distentido dos diálogos. As cenas são longas e intensas, exigindo que se mantenha o interesse, seja pelo desenvolvimento do entrecho ou pelos intrigantes despistes que o autor lança sem trégua. São três horas de duração, com intervalo, em que as cenas são alimentadas por incessante confronto de gestos contundentes e palavras ásperas, num enfrentamento de emoções passionais. Mesmo com a longa duração e com o relativo distanciamento do eixo narrativo, a encenação é corajosa ao manter o original na íntegra, sem cortes, apoiada pela segura tradução de Bruno Guida. A cenografia apropriadamente sombria   de Ulisses Cohn, ambientada com sensibilidade por Aline Santini, colabora na tonalidade opressiva que marca  as desordens emocionais. Flávio Tolezani tem presença segura e forte como o misterioso escritor. Bruno Guida, em que pese a sanguínea interpretação do policial, se apoia demais na composição física. Daniel Infantini, como o outro policial, e Bruno Autran como o irmão, driblam as dificuldades de projetar seus personagens. Wandré Gouveia está um tanto deslocado e tímido na difícil função de desempenhar papel perfeitamente dispensável.