Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (30/4/2014)
Crítica/ O estranho
caso do cachorro morto
Rafael Canedo dimensiona o monólogo interior do autista |
No livro que deu origem à adaptação teatral, o
garoto de 15 anos, portador de uma forma de autismo que particulariza algumas
das suas emoções e amplia tantas outras, é o próprio narrador das sensações
deflagradas a partir da morte do cão de uma vizinha. No percurso, de
descobertas e revelações, de conflitos e encontros, o jovem descreve como reage
às tensões para enquadrar a realidade à sua volta a um mundo de emoções
seriadas e contabilização dos afetos. Na trama, repleta de motes narrativos – de
quem assassinou o cachorro às peripécias de fugir da casa do pai para
reencontrar a mãe -, cada movimento é filtrado pela sensibilidade de quem tem
código próprio para vivenciá-lo. Na transcrição para o palco, a perspectiva do
olhar único, peculiar, perde-se pela necessidade de transformar percepção em ação
à procura de desenvolver o entrecho, mais do que recriar a apreensão emocional das
situações. Na literatura, o texto se estrutura como monólogo, o que indicaria
para a versão cênica igual tratamento, sem o qual evidenciam-se as falhas do
romance, aquelas que rondam o dramático. Moacyr Góes se apoiou, excessivamente,
na dispersão com que Simon Stephens adaptou o romance de Mark Haddon,
conduzindo a montagem ao espaço híbrido de sequência de cenas, em que a visão autista
se torna secundária e personagens não se explicam, como a da professora, reduzida
a leitora do livro escrito pelo rapaz. O diretor acentua a ausência de eixo
concentrado no menino, em favor da evolução emperrada da história. O cenário, com
figuras geométricas de Ana Santanna e Monica Martins, na falta de concepção
integrada às imagens verbais, serve-se de elementos móveis para complementar a
frequente mudança de quadros, uma agitada troca de cubos e cilindros, cães de
madeira e verdadeiros, que obscurecem e esfacelam a narrativa. Rafael Canedo
como Christopher, compõe com detalhamento vocal (a fala é dita no mesmo ritmo) e
corporal (sustenta com segurança os gestos como o da crispação das mãos) o
papel de narrador, que do fundo de sua síndrome expõe uma ordenação particular
do real. Interpretação que dimensiona a figura do autista como o centro de um
monólogo interior. Thelmo Fernandes delineia as alternâncias de sentimentos do
pai. Os demais atores têm atuações menos destacadas. Silvia Buarque uniformiza a
mãe em tonalidade descolorida, enquanto Sabrina Korgut é atropelada pela má
construção da professora Siobhan. Leon Góes, Carla Guidacci, Eduardo Rieche,
Paulo Trajano, Ricardo Gonçalves e Fabiana Tolentino estão pouco convincentes
em papéis circunstanciais.