quinta-feira, 1 de maio de 2014

Temporada 2014

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (30/4/2014)

Crítica/ O estranho caso do cachorro morto
Rafael Canedo dimensiona o monólogo interior do autista

No livro que deu origem à adaptação teatral, o garoto de 15 anos, portador de uma forma de autismo que particulariza algumas das suas emoções e amplia tantas outras, é o próprio narrador das sensações deflagradas a partir da morte do cão de uma vizinha. No percurso, de descobertas e revelações, de conflitos e encontros, o jovem descreve como reage às tensões para enquadrar a realidade à sua volta a um mundo de emoções seriadas e contabilização dos afetos. Na trama, repleta de motes narrativos – de quem assassinou o cachorro às peripécias de fugir da casa do pai para reencontrar a mãe -, cada movimento é filtrado pela sensibilidade de quem tem código próprio para vivenciá-lo. Na transcrição para o palco, a perspectiva do olhar único, peculiar, perde-se pela necessidade de transformar percepção em ação à procura de desenvolver o entrecho, mais do que recriar a apreensão emocional das situações. Na literatura, o texto se estrutura como monólogo, o que indicaria para a versão cênica igual tratamento, sem o qual evidenciam-se as falhas do romance, aquelas que rondam o dramático. Moacyr Góes se apoiou, excessivamente, na dispersão com que Simon Stephens adaptou o romance de Mark Haddon, conduzindo a montagem ao espaço híbrido de sequência de cenas, em que a visão autista se torna secundária e personagens não se explicam, como a da professora, reduzida a leitora do livro escrito pelo rapaz. O diretor acentua a ausência de eixo concentrado no menino, em favor da evolução emperrada da história. O cenário, com figuras geométricas de Ana Santanna e Monica Martins, na falta de concepção integrada às imagens verbais, serve-se de elementos móveis para complementar a frequente mudança de quadros, uma agitada troca de cubos e cilindros, cães de madeira e verdadeiros, que obscurecem e esfacelam a narrativa. Rafael Canedo como Christopher, compõe com detalhamento vocal (a fala é dita no mesmo ritmo) e corporal (sustenta com segurança os gestos como o da crispação das mãos) o papel de narrador, que do fundo de sua síndrome expõe uma ordenação particular do real. Interpretação que dimensiona a figura do autista como o centro de um monólogo interior. Thelmo Fernandes delineia as alternâncias de sentimentos do pai. Os demais atores têm atuações menos destacadas. Silvia Buarque uniformiza a mãe em tonalidade descolorida, enquanto Sabrina Korgut é atropelada pela má construção da professora Siobhan. Leon Góes, Carla Guidacci, Eduardo Rieche, Paulo Trajano, Ricardo Gonçalves e Fabiana Tolentino estão pouco convincentes em papéis circunstanciais.