quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Temporada 2014

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (15/1/2014)

Crítica/ Irmãos de Sangue
 
Recordações de infância e mortes através da memória dos gestos

A estética da Cia. Dos à Deux elimina a palavra, impondo o corpo, através do gesto, como a essência da narrativa. O movimento ganha dimensão poética e tensão dramática e se transforma na voz surda do desenho gestual. As imagens são geradas pela ação física, projetando sentimentos e lembranças, ampliando sons interiores em ressonâncias afetivas. Na construção desta linguagem, a dupla André Curti e Arthur Ribeiro, responsável pela dramaturgia, cenário, coreografia e direção, estabelece as características da arquitetura cênica, solidamente integrada à sua construção técnica. Na atual montagem, a décima da companhia, criada na França, em 1998, o refinamento formal traduz com clareza a abstração das emoções. Pela escolha de recursos, que não têm a função ilustrativa de substituir com o visual a ausência da palavra, são selecionados os quadros, capazes de interpretar a realidade da trama e alcançar a volubilidade das relações familiares. “Irmãos de sangue”, para além das fissuras que se abrem na convivência fraterna, trata da morte como deflagradora da memória, ruptura de laços e recomposição do tempo. Os dois irmãos de sangue se reaproximam no velório do pai, em hesitantes movimentos concêntricos até o abraço conciliador, desencadeando recordações da infância, e desvendando outra morte, a de um terceiro irmão. Neste percurso ao passado, regulado pela onipresença das mortes, penetra-se nos jogos ingênuos e cruéis da meninice, na autoridade e indiferença materna e no desalento dos desaparecimentos. Os fragmentos da memória compõem a sequência de cenas, em que a trupe exibe variadas técnicas (manipulação de bonecos, malabarismo e humor circense) integradas à cenográfica móvel (gangorra, mesa giratória, armário-camarim) e à elasticidade do figurino (paletós que se desfiam em cordões). A música de Fernando Mota, som balizador do movimento, silencia quando os ruídos são produzidos nos corpos ou extraídos de objetos banais como jarras, canecas e tampas plásticas. A iluminação de Bertrand Perez e Arthur Ribeiro cria atmosfera sombreada e difusa, acentuando a densidade onírica, transformando-se em solar nas evoluções dos atores ao incorporarem saltimbancos. Os bonecos e marionetes, manipulados com habilidade e integrados à inventiva cenografia (destaques para a mãe com o quadro do filho morto, e o impactante cadáver do pai), complementam o visual pulsante, no qual a figura e o movimento são quase um mesmo e único elemento. Além dos impecáveis André Curti e Arthur Ribeiro, os eficientes Matias Chebel e Cécile Givernet participam desta bem-sucedida e rigorosa encenação de um grupo em constante amadurecimento e com dinâmico domínio dos seus meios expressivos.