Crítica do Segundo Caderno de O Globo
(15/1/2014)
Crítica/ Irmãos de Sangue
A estética da Cia. Dos à Deux elimina a palavra, impondo o
corpo, através do gesto, como a essência da narrativa. O movimento ganha
dimensão poética e tensão dramática e se transforma na voz surda do desenho
gestual. As imagens são geradas pela ação física, projetando sentimentos e lembranças,
ampliando sons interiores em ressonâncias afetivas. Na construção desta
linguagem, a dupla André Curti e Arthur Ribeiro, responsável pela dramaturgia,
cenário, coreografia e direção, estabelece as características da arquitetura
cênica, solidamente integrada à sua construção técnica. Na atual montagem, a
décima da companhia, criada na França, em 1998, o refinamento formal traduz com
clareza a abstração das emoções. Pela escolha de recursos, que não têm a função
ilustrativa de substituir com o visual a ausência da palavra, são selecionados
os quadros, capazes de interpretar a realidade da trama e alcançar a volubilidade
das relações familiares. “Irmãos de sangue”, para além das fissuras que se
abrem na convivência fraterna, trata da morte como deflagradora da memória, ruptura
de laços e recomposição do tempo. Os dois irmãos de sangue se reaproximam no
velório do pai, em hesitantes movimentos concêntricos até o abraço conciliador,
desencadeando recordações da infância, e desvendando outra morte, a de um
terceiro irmão. Neste percurso ao passado, regulado pela onipresença das
mortes, penetra-se nos jogos ingênuos e cruéis da meninice, na autoridade e indiferença
materna e no desalento dos desaparecimentos. Os fragmentos da memória compõem a
sequência de cenas, em que a trupe exibe variadas técnicas (manipulação de
bonecos, malabarismo e humor circense) integradas à cenográfica móvel
(gangorra, mesa giratória, armário-camarim) e à elasticidade do figurino
(paletós que se desfiam em cordões). A música de Fernando Mota, som balizador do
movimento, silencia quando os ruídos são produzidos nos corpos ou extraídos de
objetos banais como jarras, canecas e tampas plásticas. A iluminação de
Bertrand Perez e Arthur Ribeiro cria atmosfera sombreada e difusa, acentuando a
densidade onírica, transformando-se em solar nas evoluções dos atores ao
incorporarem saltimbancos. Os bonecos e marionetes, manipulados com habilidade
e integrados à inventiva cenografia (destaques para a mãe com o quadro do filho
morto, e o impactante cadáver do pai), complementam o visual pulsante, no qual
a figura e o movimento são quase um mesmo e único elemento. Além dos impecáveis
André Curti e Arthur Ribeiro, os eficientes Matias Chebel e Cécile Givernet participam
desta bem-sucedida e rigorosa encenação de um grupo em constante amadurecimento
e com dinâmico domínio dos seus meios expressivos.