Crítica/ “Kiss me
Kate!”
A comédia musical de Sam e Bella Spewack recria as
brigas de bastidores que casal de atores americanos transferia para o palco
enquanto corria em paralelo a encenação de “A megera domada”. A história é
verdadeira e aconteceu em 1935, e a dupla de libretistas convidou Cole Porter
para musicar as desavenças reais dos Lunts e as ficcionais de Shakespeare. O
paralelismo é duplamente clássico. A estrutura do musical, estreado em 1948,
tem no teatro a trama que apoia a evasão do gênero, reiterando suas
características, mas com dramaturgia e trilha de qualidade. Porter e
Shakespeare são eternos, e reuni-los para o divertimento inteligente passa ao
largo de seguir fórmulas ou quebrar regras. “Kiss me Kate!” é duradouro como são
os produtos comerciais que não barateiam o valor da mercadoria, subjugando-a aos
enganosos apelos da bilheteria. A montagem de Charles Möller (direção) e
Claudio Botelho (versão brasileira) ainda que fiel ao espírito dos musicais do
circuito Broadway-West End, tem respiração nacional e rigor próprio de
execução. A tradução de Claudio Botelho, tanto das canções quanto do texto, alcança
alto padrão, aclimatando-se ao nosso idioma com sonoridade fluente sem trair a musicalidade original. As letras
de Cole Porter, sejam as de dubiedade maliciosa (“Homens, não!”), as de poesia
romântica (“Wunderbar’), e as de puro brilho (“Mais uma estreia”) ganham
vocalização que chega aos ouvidos, intermediada por rimas enriquecidas pela
transposição do sentido. A melhor e mais criativa delas é a versão de “Chama o
Shakespeare!”, que Botelho adapta da paródia ao teatro americano para
comentários bem humorados sobre o atual panorama do palco brasileiro. E com
direito a autocrítica. O abrasileiramento se estende à direção que reuniu elenco,
músicos e técnicos do melhor nível local de profissionalismo. A direção
musical, regência e adaptação dos arranjos de Marcelo Castro e a orquestra de músicos
competentes, inundam o espetáculo em sintonia fina com as envolventes melodias
de Cole Porter. Alonso Barros segue, como citação, o estilo coreográfico de
tantos outros musicais. A cenografia de Rogério Falcão vai pela mesma linha,
com telões pintados e maquinaria funcional. O figurino de Carol Lobato mescla
as roupas de época com o colorido das vestes do show-business. Arrematando o
quadro de bom acabamento, destacam-se a iluminação de Paulo Cesar Medeiros e o visagismo de Beto Carramanhos. O elenco
de 22 atores, cantores e bailarinos formam coeso ensemble no qual o protagonismo
fica por conta das oportunidades oferecidas pelos papéis. Fabi Bang é a perfeita
loura sexy, e Will Anderson um cômico de burlesco. Jitman Vibranonski tem
físico para compor figura senhorial. Ruben Gabira se mostra um dançarino em passos
de humor. Guilherme Logullo sapateia acrobaticamente e Chico Caruso cumpre a
função de personalidade em cena. Alessandra Verney, com seu alcance vocal e
presença atraente, duplica suas habilidades como Lili e Kate. José Mayer
interpreta Fred e Petruchio com os recursos maduros de ator e solta a vigorosa
voz de barítono com a autoridade de ótimo cantor.