Crítica/ “Race”
David Mamet, autor de “Race”, coloca em
perspectiva dramática questões candentes da sociedade americana,
universalizando seu alcance pela agudeza de observação no confronto dos
argumentos. A ironia e a dúvida, que comandam seus diálogos, repletos de
perguntas desconcertantes e afirmações não concluídas, estabelecem o terreno arenoso
em que se movem personagens de fala cínica e olhar dúbio. Os conflitos, ligados
a disfunções familiares, desonestidade intelectual ou exposição de
preconceitos, são reveladores do esgarçamento de uma teia social à beira da
ruptura. Não há áreas de escape para
além das evidências dos atritos com que máscaras e injustiças arranham
conceitos e idealizações, e diante dos quais Mamet aponta a hipocrisia das
convenções. Em “Race”, um homem branco, acusado de estuprar uma mulher negra,
contrata para defende-lo escritório de advogacia cujos sócios são também um branco
e um negro. É secundário se a causa deve ser aceita ou será vencida. Se razões éticas
ou manobras jurídicas devem ser invocadas. O texto está distante do drama de
justiça e da trama policial, o que se constrói são os escaninhos que abrigam as
várias formas preconceituosas de ideias estratificadas. Nas atitudes residuais,
nas palavras que induzem e na obscuridade das intenções se desvenda o que está
por trás da ação. Pergunta-se a procura de respostas que se querem
incontestáveis, como monólogos em série que mostram a extensão das mentiras. Gustavo
Paso conduz o espectador por essa trilha dissimulada com o cuidado de não demarcar
limites e indicar rumos. A direção deixa que o autor balize a montagem e que das
contraditórias vozes de cada um surja a verdade de todos. Com apoio da fluente
tradução de Leo Falcão, da cenografia sugestiva de Luciana Falcon e Gustavo
Paso, da iluminação sutil de Paulo Cesar Medeiros e da trilha precisa de André
Poyart, o diretor avança com simplicidade na costura narrativa de Mamet, em
dialética cênica que acompanha as diversas camadas dos argumentos, fiel às
rubricas. A arquitetura bem desenhada do texto, ao qual Gustavo Paso seguiu com
rigor, respeito e entendimento, permite que se acompanhe com prazer uma
dramaturgia inteligente. O quarteto de atores, que têm interpretações
adequadas, está afinado em tonalidade um pouco acima da sonoridade cáustica das
provocações do texto. As atuações adquirem força sanguínea e raiva represada,
que trazem ao primeiro plano o que poderia ganhar mais se projetadas como
ambiguidades. Yashar Zambuzzi sofre do efeito contrário, pela excessiva timidez
e contração do rico empresário acusado
de estupro. Heloisa Jorge, a advogada assistente, se mantém num único registro,
sem variantes na linearidade de sua contracena. A dupla Gustavo Falcão e
Luciano Quirino leva às altitudes da explosão os movimentos subterrâneos dos
advogados centrais da trama. Adotam uma carga de intensidade nervosa que
contraí a racionalidade do debate. Mas ambos, mesmo seguindo uma linha que
poderia ser atenuada, emprestam dignidade e segurança no mergulho
interpretativo em personagens complexos.