Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (11/11/2015)
Crítica/ “Inútil
a chuva”
Família remando para se manter na superfície |
O importante é se manter na superfície, continuar
remando apesar de não se ter aonde chegar. A imagem de uma mulher e seus três
filhos em um barco é o ponto de partida de narrativa poética-familiar-plástica que
se move ao encontro do perdido. Na trajetória estão um homem, pai e pintor
suicida, e um quadro, antes desprezado e agora cobiçado. Esse grupo a deriva vagueia
entre a reconstrução de lembranças deixadas pela ausência, e pela valorização
de obra que só ganha vida após a morte. A dramaturgia de Paulo de Moraes e Jopa
Moraes navega pelo realismo de uma família em estado bruto e pelo simbolismo da
arte como duvidoso meio de troca. Os autores condensam na cena inicial dos
remadores, que se repete ao final, os movimentos inúteis de compreender os
mistérios dos sentimentos e o imponderável da criação. Aparentemente dissociada
e sem unidade, a ação conduz a um espaço menos dramático e mais visual. O
percurso não é linear, mas pictórico, revelando camadas de tintas ilustrativas que
competem com o traço expositivo. São sequências que se desorganizam como narração
para estender a força do retrato até ao ponto da ruptura com a palavra. O
entrechoque denuncia o desequilíbrio do texto construído aos pedaços e fracionado
em diálogos curtos como contraplano de um painel. O diretor Paulo de Moraes tem
revelado nas últimas montagens o depuramento de suas experiências cenográficas.
Ao lado de Carla Berri, avança com inventividade e efeitos de impacto na
ambientação de “Inútil a chuva”. O cenário surpreende pelo inusitado do barco e
beleza do janelão e pela plasticidade de taças e copos com líquidos coloridos que
transmitem, no translúcido do vidro, as dissimulações de uma festa. A
iluminação de Maneco Quinderé é decisiva, quase coautora, na teatralidade da
cenografia. O figurino de Rita Murtinho e a direção musical de Ricco Viana são elementos
de discreta intervenção. As oito pinturas do artista suicida mencionadas na
abertura de cada uma das cenas estabelecem a linha do entrecho, que a direção transforma
em “quadros vivos”. Paulo de Moraes perde a coesão ao alinhavar, cenograficamente,
as contrastantes e desconexas relações dramáticas, impulsionando-as pelo que
propõem como imagem. O elenco se ressente de ser figurante desse tableau, figuras fixadas na composição
de um mural. Patricia Selonk recorre a seu registro particular de intérprete
para comandar a navegação tortuosa da família disfuncional. Leonardo Hinckel ainda
não demonstra recursos para sustentar o garoto sensível e tímido. Amanda
Mirasci corresponde ao papel integrador da jornalista. Andressa Lameau e Tomás
Braune têm atuações intensas como os filhos rebeldes. Marcos Miranda está mais
convincente nas cenas intimistas do que nas de demonstração física.