sexta-feira, 5 de junho de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (5/6/2015)

Crítica/ Estamos indo embora...
Vozes que ecoam os ruídos da existência perdulária

Primeiro texto teatral e estreia na direção, “Estamos indo embora...”, de Luiz Felipe Reis, demonstra tomada de posição corajosa diante da interseção de linguagens e ambição de investigar para além de códigos estabelecidos. A ousadia está na forma como pretende, com esta abordagem, acondicionar o dramático num espaço de sensibilização. Não há trama, muito menos evolução narrativa, apenas um painel de vozes e imagens que ilustram a ação do homem nas transformações climáticas e na irracionalidade da existência perdulária. O efeito é o de interferir nos sentidos, esgarça-los ao ponto de saturar a percepção e provocar estímulos. São quatro quadros em que dois atores se confundem, como figuras integradas, mais pela palavra do que pelo corpo, na exposição visual e sonora. Na cena inicial, os atores, em movimentos lentos, percorrem área coberta por gelo seco em contraluz às impressionantes projeções do derretimento de montanhas e calotas polares. É o primeiro e balizador contraste entre planos expressivos que, ao longo da encenação, se reproduzem como sinais convergentes. E como se quer falar de ciência, o autor escolhe o formato de conferência para apresentar  diversas avaliações sobre o uso distorcido dos recursos do planeta. Expõe como leitura de relatório, observações sobre o estado do mundo, quebra do equilíbrio ambiental, opulência consumista, nova era geológica, militarização social, gênese bíblica, e recorre, até mesmo, a citação a Hamlet. Tantas e tão pródigas referências, ainda que teatralizadas no formato de palestra, o que atenua a aridez da locução, evidenciam um certo tom de depoimento e recolha de dados. A alternância de ideias e impressões acaba por tornar indistinto o que se imaginava diálogo provocativo. A passagem do presente a um futuro imaginário, também cai no vazio pela desconexão com o tempo cênico, mas que conduz ao penúltimo quadro, aquele que dimensiona, como texto e direção, as melhores qualidades do inquieto Luiz Felipe Reis. A possibilidade de geração de nova vida, na conversa de um casal num mundo de incertezas, devolve as dúvidas de aceitar o nascimento para inescapável desumanização e de encontrar simples razões para estar aqui. Numa cena de extrema sutileza, emocional e reflexiva, o deslocamento sutil das cadeiras, antecipado pelo delicado balanço do ponto de luz, imprime carga sincera à formalidade do pensamento. Julia Lund e Márcio Machado se apossam com autoridade interpretativa do universo verbal e simbólico da partida pressentida de um mundo que se esfacela.