Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (13/6/2015)
Crítica/ João
Cabral
Ação física para um retrato onírico |
Não é fácil fazer do poema teatro. A palavra
poética ecoa sonoridades que percorrem áreas emocionais e tempos de percepção de
complexas reverberações cênicas. A Companhia de Teatro Íntimo se propõe a enfrentar,
com coragem, as dificuldades de interpretar a musicalidade árida e monumentalidade
cotidiana da obra de João Cabral de Melo Neto sem ranço de recital e ousadias
formais. O roteiro do diretor Renato Farias incorpora as latitudes da escrita
do diplomata pernambucano, assaltado por incurável dor de cabeça do tamanho do
mundo e lembranças inesquecíveis de vidas severinas. O essencial da geografia
da morte na terra infecunda da miséria e da paixão na arena da dança e dos
touros surge no palco com a mesma força da leitura no papel. A integridade e poder
aliciante de poemas de contundência seca e rigor na crítica social estão
preservados na montagem que se intitula, despojada e simplesmente, “João Cabral”.
Mas as características de um corpo poético tão sólido sofrem com a inevitável fragmentação de traduzi-lo em imagens físicas
e ação cênica. Por mais que o diretor procure a consonância, e Renato Farias
tenta com bravura, muito se perde como escuta e fixação visual. É árduo encenar
versos sofisticados (“Se diz a palo seco/ o cante sem/ O cante/ se diz palo
seco/ a esse cante despido/ ao cante que se cante), reproduzir o tom de crônica
(É a dor das coisas/ O luto desta mesa/ É o regimento proibindo/ Assovios, versos,
flores), fazer elegia à aspirina (Claramente: o mais prático dos sóis/ O sol de
um comprimido de aspirina/ de emprego fácil, portátil e barato/ compacto de sol
na lápide sucinta/); e ode a toureiros (Mas eu vi (...) Manolete, o mais
deserto/ o toureiro mais agudo/ mais mineral e desperto/ o de nervos de
madeira/ de punhos secos de fibra/ o da figura de lenha/ lenha seca da
caatinga). Farias vence, em parte esse enfrentamento, no modo como padroniza a
vocalização. Mantém o mesmo ritmo para todos os poemas, numa tonalidade
interpretativa que dá unidade de atuação, mas impede que ressaltem nuances e
alternem temperaturas. Ao insistir em criar situações para ilustrar retratos
oníricos, imprime uma movimentação exterior que, em algumas cenas, prejudica a
interioridade das palavras. Ainda que o uso de caules de cana atinja bons
efeitos, o quadro com dança flamenca soterra a precisão cortante de emoções
ardentes. Caetano O’Maihlan, Gaby Haviaras, Rafael Sieg e Raphael Viana desempenham
com segurança e relativa autoridade a poética de João Cabral de Melo Neto,
seguindo a linha da direção.