Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (27/5/2015)
Crítica/ O Grande
Livro dos Pequenos Detalhes
A dramaturgia e a encenação desta proposta de
criar narrativa teatral pouco convencional são feitas através de contrastes,
sinais invertidos e sentidos trocados. Há uma lógica no desmonte das formas de
montar a trama como um quebra-cabeças que nunca se arma, e de construir a cena
como o oposto do que é dado ver. As aparências são enganosas e as intenções
parecem bizarras, nunca se concretizando, integralmente, as pistas que lança com
método, mas objetivos difusos. A desconexão entre o tom narrativo e o entrecho
expositivo é intencional e percebida pelo espectador com a estranheza da
desarrumação. Para tornar ainda mais obscuros os caminhos deste percurso que se
desmente a cada momento, são citados, indiretamente, o poeta inglês Philip
Larkin e o filósofo alemão Theodro W. Adorno (“normalidade significa morte”).
Já na primeira cena se propõe algo desconcertante: uma atriz estática e um ator
com máquina que produz bolhas de sabão ficam longos minutos diante da plateia
sem que nada aconteça. Para em seguida,
a dupla completar o grupo, que em torno de barraca de camping, apresenta
sugestões banais para um vago departamento de clarificações e distrações. São
desencadeadas ideias de diversão escapista e eficácia alienante, que variam de
um novo chupa-cabra e de maneiras de distrair o povo com a vida da família real
inglesa. Seria esse prólogo a antecipação dos elementos das histórias que se
assistirá logo depois? Ou crítica ao modo como as narrativas se oferecem com
significados fechados? Talvez a montagem não esclareça com os longas, falastrões
diálogos de humor deslocado na trama do desaparecimento misterioso de uma
locutora de rádio que noticia a situação do trânsito. E do funcionamento do
departamento secreto que estuda possíveis divertimentos para que as pessoas
esqueçam os problemas. O texto de Alexander Kelly, por demais inglês no seu
humor e na adesão aos investigativos rumos de dramaturgia de múltiplas
fronteiras, estabelece perplexidade diante de códigos a decifrar e associações
a descobrir. A direção coletiva do elenco – Cláudia Gaiolas, Michel Blois,
Paula Diogo e Thiare Maia Amaral – não facilita a fluência na apreensão de
significados, que demonstra ser a provocação da desestruturada dramaturgia. Tanto
como diretores quanto como atores, o elenco transmite empenho a uma concepção
que aponta outras possibilidades de encenação, ainda que deixem à mostra bem
mais o “processo de criação” do que o “produto final”. O desenho do
espetáculo segue traços artesanais na simplicidade da cenografia de Elsa
Romero, na iluminação de Wagner Azevedo e no coloquialismo da tradução de Alex
Casal e Joana Frazão. O artesanato se estende às interpretações, com Paula
Diogo sobressaindo como presença que melhor alcança os efeitos contrários do
que sua atuação quer fazer acreditar.