Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (16/5/2015)
Crítica/ O Olho Azul
da Falecida
Joe Orton, autor desta comédia macabra, com
técnica de vaudeville e humor à inglesa, é um dos nomes surgidos na década de
1960 como um dos mais petulantes na dramaturgia britânica. Morto em 1967, teve
uma produção pequena, mas coerente com suas características como autor.
Demolidor de instituições sociais, comportamentos e tradições, utilizava formas
consagradas de narrativa para destruir convenções e exercer comicidade ácida e,
sutilmente, perversa. Mas seu universo foi provocante num período de mudanças
políticas e quebras de códigos, no momento em que a Inglaterra assistia ao
esfacelamento de seu império. Hoje, “O olho azul da falecida” é devolvida à sua
medida de comédia bem estruturada, com diálogos com algum cinismo e ainda com
potencial cênico, remanescente diluído do furor original. A trama reúne em
torno do cadáver da mulher, o viúvo incapaz de perceber as tramoias que se
passam à sua volta, entre o filho, que nunca mente, a agente que matou sete
maridos, um ladrãozinho e um policial. O corpo da morta se torna um bem
precioso, já que se mostra objeto de troca capaz de desvendar o caráter de cada
um na corrida pelo ouro. Todos são corrompíveis. O único que não compactua se
transforma em réu, culpado por sua inocência. A montagem de Sidnei Cruz se
avizinha da atualização, discreta e cuidadosa, de acontecimentos que enviam
sinais a referências locais. É um modo habilidoso de importar um humor tão característico,
que, quase sempre, se perde na vontade de reproduzi-lo integralmente, mas que
sofreu desgaste com o tempo. O diretor persegue a agilidade como efeito cômico,
num tributo ao vaudeville, que está na base do texto. Mas essa escolha, que
acelera a ação, por outro lado, diminui a eficácia dos diálogos, na sua
eventual contundência crítica aos códigos vitorianos. O cenário de José Dias e
o figurino de Samuel Abrantes procuram uma atmosfera inglesa mais reproduzida
do que recriada. A iluminação de Rogério Wiltgen é ágil e a música de Wagner
Campos, atuante. Johnny Ferro é inexpressivo na composição física de um
“bobbie” (guarda inglês). Helder Agostini regula sua interpretação ao
estereotipo do malandro carioca, e não a marginalidade de um garoto inglês.
Rafael Canedo, em que pese o seu problema de emissão vocal, projeta a
ambiguidade do jovem sempre verdadeiro. Gláucia Rodrigues não sustenta conduzir
com centralidade a ação. Tuca Andrade, mesmo longe da figura de detetive da
Scotland Yard, retira humor do personagem sonso. Mário Borges acentua a
ingenuidade do único honesto neste jogo cínico das aparências.