Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (29/3/2015)
Crítica/ Autobiografia
Autorizada
Revisitando a infância interiorana |
O título bem-humorado do espetáculo em que Paulo
Betti é autor, diretor (ao lado de Rafael Ponzi) e ator indica, em boa parte, o
que essa “Autobiografia autorizada” pode oferecer. A infância de Paulo nas
cidades de Rafard e Sorocaba, interior de São Paulo, até aos 18 anos, quando
chega à capital, se parece a uma viagem afetiva por geografia emocional que
explora regiões de contornos fantasticamente realistas. São lembranças impelidas
pela pobreza da imigração, religiosidade
afro, ingenuidade do universo caipira e pela epifania que desencadeia o fluxo dos
sentimentos. Ao longo do tempo, Paulo Betti anotou em um caderno impressões sobre a sua origem, os 15 irmãos, a
convivência familiar, o medo de fenômenos desconhecidos, a dureza do pouco
dinheiro e a fartura das descobertas. Não há qualquer complacência queixosa ou
saudosismo melodramático, mas tão somente, biografia amorosa descrita como
experiência formadora e vivência evocativa. As condições adversas, que marcaram
a família Betti, são tratadas com o mesmo afago com que toca nos mistérios
escondidos em rezas e curas de quebranto da avó e da mãe. A delicadeza da
narrativa está ainda na forma como exibe
os objetos, guardados por décadas, e que representam a matéria física do
passado revivido. É o arco que roda, preso a um arame amassado. O pião de
madeira escurecida, que gira pela habilidade infantil intocada na vida adulta.
O facão de gume cego que sangrou muitos porcos. Com tão ricas fontes
biográficas, é compreensível o desejo do autor-diretor em incluir tantas
informações quanto os apelos da memória afetiva. A frustrada passagem pela
rádio, as piadas sobre as dublagens e a desconexão do tempo para fugir da
linearidade são dos poucos momentos em que o monólogo perde o ritmo, interferindo
na docilidade como se conduz o percurso, sem vaidade e exibicionismo. O cenário
em papel de Mana Bernades funciona como tela para projeções e esboço da pequena
casa familiar, confirmando a simplicidade e o ambiente doméstico que dominam a
montagem. O ator Paulo Betti demonstra a mesma sinceridade e despojamento do
autor Paulo Betti. Sem artifícios, comunicando-se diretamente com a plateia,
dosando a emoção com o humor, estabelece conversa amena com o público, expondo
intimidades. Com objetos que adquirem carga simbólica na sua história pessoal,
e na busca de significação que os nomes podem conter, Paulo Betti cria o ambiente para
desenrolar causos de uma vida áspera,
mas encantatória, de um caipira que chegou com dificuldade ao mundo.