Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (4/3/2015)
Crítica/ Um Pai
(puzzle)
Do livro escrito por Sybille Lacan, filha do
psicanalista francês Jacques Lacan, Evaldo Mocarzel adaptou, condensando, o
relato das reverberações interiores de uma paternidade que nasce do “nada”, por
que considerada fortuita, e que se consolida no “nada”, por que a morte a torna
indissolúvel. Com o subtítulo de quebra-cabeças, o texto é marcado pelo
profundo sentimento de que a ascendência determinou, pela origem e convivência,
uma “solidão afetiva” permanente, e que as peças emocionais só podem ser reunidas
pela escrita, único meio de não perder a memória. Viver para Sybille é estar
com o pai ausente. Insuportável é saber que na presença se distanciam. Neste
percurso, em que a “sensibilidade extrema beira a mágoa” e que se sente “fruto
do desespero”, a menina rejeitada e a mulher na iminência do abismo pessoal
buscam o pai. Mas é na sua figura desencaixada de um puzzle que nunca encontra os
pedaços possíveis de desenhá-lo com contornos mais definidos que arrasta seu
amor. O trajeto, como um exercício de linguagem, se apresenta como possibilidade
de circunscrever a indiferença, o desprezo e a depressão, preparando Sybille para
o encontro definitivo, representado no gesto de depositar suas lágrimas secas
no túmulo paterno. Como na “Carta ao pai”, de Kafka, também a filha de Lacan nunca
enviou seus mais profundos desabafos a quem endereçou toda a sua vida. Neste
pungente depoimento de alguém que não conseguiu alcançar o objeto amoroso, perdendo-se
na sua procura e somente o reencontrando quando o perde, a dor se traduz em
sobrevivência. A dupla de diretores, Vera Holtz e Guilherme Leme Garcia, despojou
a cena de quaisquer elementos que se desviem da presença absoluta da atriz no
palco. O sentido de monólogo se prova na relação que a intérprete estabelece
com a plateia: direta e antidramática. A montagem se reveste de secura,
estendida à negritude do cenário e a uma mesma inflexão vocal, que mantêm a
angustiada exposição em tonalidade única e sem variantes e arroubos. O cenário
de Marcelo Lipiani, que alterna com volumetrias diferentes lápides de
cemitério, é o pano de fundo neutro, quebrado apenas pela simbólico túmulo
transparente com água. A iluminação de Maneco Quinderé movimenta claros e
escuros, em permanente intervenção no ambiente sóbrio, emprestando ação
contínua à densidade estática das duras palavras. A trilha de Andrea Zeni e
Zélia Duncan interfere com parcimônia neste quadro de sonoridades interiores, provocando
pequenos comentários musicais, apenas como pausas e vinhetas complementares. Ana
Beatriz Nogueira divide a solidão no palco com o caminho árduo das palavras
povoadas de rejeição. No enfrentamento das várias vozes que ecoam em Sybille,
Ana as transmite com aridez nivelada por um só diapasão. Há uma frieza na
interpretação que procura tocar a imponderabilidade da dor, sem atribuir-lhe
sentimentalismo ou apelar a dramaticidades. Talvez Ana Maria Nogueira tenha
levado um pouco além da medida, esse distanciamento emocional, o que não
impediu que transmitisse com vigor, ainda que enregelado, a tristeza e
melancolia de uma existência vivida como perda.