segunda-feira, 9 de março de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (6/3/2015)
Crítica/ Salina – A Última Vértebra
Território imaginário do amor e do ódio
O francês Laurent Gaudé mergulhou na ancestralidade da África profunda, celebrando ritos, desvendando imaginários, sacralizando o humano. A saga da mulher, violentada no desejo e impulsionada ao perdão para construir a sua vingança, incursiona pelo território ocupado pelas dissonâncias do amor e do ódio. A medida em que se aproxima dos sentimentos mais cruéis, recompõe em paralelo os    sentidos essenciais da aventura humana, na aridez das areias do deserto ou na límpida correnteza do rio. A natureza, que desafia e provoca, integra e purifica, permite que o sagrado se manifeste sob a forma das maiores vilanias sem perder a força ritualizada. Salina provoca morte e se descarna até os ossos para alcançar a redenção dos  ferimentos de uma existência suprimida e da barbárie de atos impensados. Em texto que compartilha a estrutura do trágico com a oralidade da fabulação, os diretores Ana Teixeira e Stéphane Brodt refazem a intervenção poético-etnográfica que desenvolvem no grupo Amok. O espaço cênico abriga os aspectos místicos da música e dança para projetar os conflitos que conduzem o destino. O artesanato desta rusticidade das emoções, desenvolvido como material bruto de ecos ancestrais, ganha tratamento de poema heroico. Os diretores, também cenógrafos e figurinistas, preenchem esse universo com imagens de força expressiva que envolvem a narrativa com crua delicadeza. O espectador é levado em 3h40 a acompanhar os embates desta pequena humanidade ao som da música de Fábio Simões Soares e seus estéticos instrumentos. A ambientação, com elementos como bancos, esteiras e instrumentos musicais, compõem com o figurino visual exuberante. Entre os tantos méritos desta montagem está na preparação do elenco, capaz de enfrentar as exigências de canto, dança e atuação, demarcados por referências étnicas e culturas contrastadas. Ainda que as atrizes – Luciana Lopes, Tatiana Tibúrcio, Ariane Hime, Graciana Valladares e Sol Miranda – tenham um pouco mais de oportunidades que os atores – Sérgio Ricardo Loureiro, André Lemos, Thiago Catarino, Reinaldo Junior e Robson Freire -, o conjunto se harmoniza nesta celebração ao imaginário e à ritualização.