Crítica do Segundo Caderno de O Globo (6/3/2015)
Crítica/ Salina – A Última Vértebra
O francês
Laurent Gaudé mergulhou na ancestralidade da África profunda, celebrando ritos,
desvendando imaginários, sacralizando o humano. A saga da mulher, violentada no
desejo e impulsionada ao perdão para construir a sua vingança, incursiona pelo
território ocupado pelas dissonâncias do amor e do ódio. A medida em que se
aproxima dos sentimentos mais cruéis, recompõe em paralelo os
sentidos essenciais da aventura humana, na aridez das areias
do deserto ou na límpida correnteza do rio. A natureza, que desafia e provoca,
integra e purifica, permite que o sagrado se manifeste sob a forma das maiores
vilanias sem perder a força ritualizada. Salina provoca morte e se
descarna até os ossos para alcançar a redenção dos ferimentos de uma
existência suprimida e da barbárie de atos impensados. Em texto que compartilha
a estrutura do trágico com a oralidade da fabulação, os diretores Ana Teixeira
e Stéphane Brodt refazem a intervenção poético-etnográfica que desenvolvem no
grupo Amok. O espaço cênico abriga os aspectos místicos da música e dança para
projetar os conflitos que conduzem o destino. O artesanato desta rusticidade
das emoções, desenvolvido como material bruto de ecos ancestrais, ganha
tratamento de poema heroico. Os diretores, também cenógrafos e figurinistas,
preenchem esse universo com imagens de força expressiva que envolvem a
narrativa com crua delicadeza. O espectador é levado em 3h40 a acompanhar os
embates desta pequena humanidade ao som da música de Fábio Simões Soares e seus
estéticos instrumentos. A ambientação, com elementos como bancos, esteiras e
instrumentos musicais, compõem com o figurino visual exuberante. Entre os
tantos méritos desta montagem está na preparação do elenco, capaz de enfrentar
as exigências de canto, dança e atuação, demarcados por referências étnicas e
culturas contrastadas. Ainda que as atrizes – Luciana Lopes, Tatiana Tibúrcio,
Ariane Hime, Graciana Valladares e Sol Miranda – tenham um pouco mais de
oportunidades que os atores – Sérgio Ricardo Loureiro, André Lemos, Thiago
Catarino, Reinaldo Junior e Robson Freire -, o conjunto se harmoniza nesta
celebração ao imaginário e à ritualização.