quarta-feira, 18 de março de 2015

Temporada 2015

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (18/3/2015)

Crítica/ Krum
Pequena humanidade assistindo à sua inércia de viver
Krum chega do exterior e tem sua mãe a espera no aeroporto. Não traz nada, apenas aquilo que levou: uma mala de roupas, agora sujas. Encontra nesta chegada, o mesmo que deixou na partida. Revê a pequena humanidade, confinada em ambições medíocres, vivendo à exaustão a falta de vontade e vagando em miudezas cotidianas com igual inércia dos falsos dilemas de antes, que roubam qualquer possibilidade do agora e do que possa vir um pouco mais além. Ao assistir as tentativas de aproximar-se do outro, em dois casamentos sem qualquer entusiasmo, e a dois funerais que paralisam sentimentos genuínos, Krum confessa a si mesmo não estar preparado para começar a viver. O autor israelense Hanoch Levin é cruel com personagens que parecem reduzidos a ”driblar o aluguel, os impostos, a pobreza”, e condenados a ”insônia e a solidão”. As dúvidas se estendem ao melhor horário para a prática de exercício físico, se pela manhã ou à noite. Os desejos estão reduzidos à espera da companhia de um homem de pijama, a vinda de um neto e a oferta de emprego em supermercado. Mesmo para esses resíduos de escolhas, fazem tão pouco para consegui-los, seguros de que não há nada ou muito pouco a fazer. Essa visão niilista, contrabalançada por humor agridoce, se acentua por Levin ao situar as motivações bélicas externas como cenário esmaecido de ruidosas escaramuças internas. Não sem motivo, que o autor atribui a Krum o codinome de o Ectoplasma. Marcio Abreu transpôs o determinismo da narrativa a um espaço poético-emocional, desbastado de drama e restrito à crueza expositiva. A voz do filho que se ouve no início, ecoa no palco, de onde surge um casal seminu, que anuncia o grotesco de verdades despidas. A tônica da montagem é a do despojamento, com a caixa preta tendo ao centro a cenografia corporal dos atores, a sutil revelação dos elementos do cenário e ambientação sonora em que ruídos de guerras se misturam a dolorosos cânticos. O lugar nenhum de onde vem Krum, ao lugar de sempre de onde nunca saiu, é aí que o diretor estabelece o território cênico, em que o corpo se reveste de “uma máscara de sofrimento” e que um dia será “uma espessa camada de cinza”. O tributo a um dos mortos, na cerimônia das cinzas, é de arrebatadora beleza. O  quadro negro desse vazio de como se situar, é preenchido com o agrupamento do elenco em formas que se movimentam como cenários vivos, dialogando com as vozes miúdas de quem nada mais tem a esperar. O desenho de movimento de Marcia Rubin é uma verdadeira codireção, não só no ajuste perfeito à concepção de Marcio Abreu, como no detalhamento gestual de cada ator. O cenário de Fernando Marés surge aos poucos, em progressão dramática, e a serviço das interpretações. A iluminação de Nadja Naira é decisiva no visual límpido, enquadrando cada cena aos movimentos. Como destaque, o mergulho no escuro do cinema. A trilha e os efeitos sonoros de Felipe Storino são marcantes. A tradução de Giovana Soar tem fluência e o figurino de Ticiana Passos, a discrição dominante na montagem. O elenco equilibra o coletivo adensamento formalista, com a quebra individual de empostações. Cris Larin e Edson Rocha investem no humor patético do casal festeiro. Rodrigo Bolzan e Inez Viana projetam a desesperança dos humilhados. Ranieri Gonzalez deixa à mostra a vida perdida do homem doente, em destaque na cena do por do sol. Grace Pasô alia a composição corporal à voz desamparada da mãe. Rodrigo Ferrarini se mantém num plano secundário. Renata Sorrah está plenamente integrada ao corpo do grupo. Danilo Grangheia demonstra a força de intérprete na dicção diversa que empresta ao mesmo monólogo diante da morte da mãe, no início e no final.