Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (18/3/2015)
Crítica/ Krum
Krum chega do exterior e tem sua mãe a espera no
aeroporto. Não traz nada, apenas aquilo que levou: uma mala de roupas, agora
sujas. Encontra nesta chegada, o mesmo que deixou na partida. Revê a pequena
humanidade, confinada em ambições medíocres, vivendo à exaustão a falta de
vontade e vagando em miudezas cotidianas com igual inércia dos falsos dilemas de
antes, que roubam qualquer possibilidade do agora e do que possa vir um pouco
mais além. Ao assistir as tentativas de aproximar-se do outro, em dois
casamentos sem qualquer entusiasmo, e a dois funerais que paralisam sentimentos
genuínos, Krum confessa a si mesmo não estar preparado para começar a viver. O
autor israelense Hanoch Levin é cruel com personagens que parecem reduzidos a
”driblar o aluguel, os impostos, a pobreza”, e condenados a ”insônia e a
solidão”. As dúvidas se estendem ao melhor horário para a prática de exercício
físico, se pela manhã ou à noite. Os desejos estão reduzidos à espera da companhia
de um homem de pijama, a vinda de um neto e a oferta de emprego em supermercado.
Mesmo para esses resíduos de escolhas, fazem tão pouco para consegui-los, seguros
de que não há nada ou muito pouco a fazer. Essa visão niilista, contrabalançada
por humor agridoce, se acentua por Levin ao situar as motivações bélicas
externas como cenário esmaecido de ruidosas escaramuças internas. Não sem
motivo, que o autor atribui a Krum o codinome de o Ectoplasma. Marcio Abreu transpôs
o determinismo da narrativa a um espaço poético-emocional, desbastado de drama
e restrito à crueza expositiva. A voz do filho que se ouve no início, ecoa no
palco, de onde surge um casal seminu, que anuncia o grotesco de verdades
despidas. A tônica da montagem é a do despojamento, com a caixa preta tendo ao
centro a cenografia corporal dos atores, a sutil revelação dos elementos do
cenário e ambientação sonora em que ruídos de guerras se misturam a dolorosos
cânticos. O lugar nenhum de onde vem Krum, ao lugar de sempre de onde nunca
saiu, é aí que o diretor estabelece o território cênico, em que o corpo se
reveste de “uma máscara de sofrimento” e que um dia será “uma espessa camada de
cinza”. O tributo a um dos mortos, na cerimônia das cinzas, é de arrebatadora
beleza. O quadro negro desse vazio de
como se situar, é preenchido com o agrupamento do elenco em formas que se
movimentam como cenários vivos, dialogando com as vozes miúdas de quem nada
mais tem a esperar. O desenho de movimento de Marcia Rubin é uma verdadeira
codireção, não só no ajuste perfeito à concepção de Marcio Abreu, como no
detalhamento gestual de cada ator. O cenário de Fernando Marés surge aos poucos,
em progressão dramática, e a serviço das interpretações. A iluminação de Nadja
Naira é decisiva no visual límpido, enquadrando cada cena aos movimentos. Como
destaque, o mergulho no escuro do cinema. A trilha e os efeitos sonoros de
Felipe Storino são marcantes. A tradução de Giovana Soar tem fluência e o
figurino de Ticiana Passos, a discrição dominante na montagem. O elenco
equilibra o coletivo adensamento formalista, com a quebra individual de empostações.
Cris Larin e Edson Rocha investem no humor patético do casal festeiro. Rodrigo
Bolzan e Inez Viana projetam a desesperança dos humilhados. Ranieri Gonzalez deixa
à mostra a vida perdida do homem doente, em destaque na cena do por do sol.
Grace Pasô alia a composição corporal à voz desamparada da mãe. Rodrigo Ferrarini
se mantém num plano secundário. Renata Sorrah está plenamente integrada ao
corpo do grupo. Danilo Grangheia demonstra a força de intérprete na dicção
diversa que empresta ao mesmo monólogo diante da morte da mãe, no início e no
final.