Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (25/3/2015)
Crítica/ Mistero
Buffo
Das duas dezenas de mistérios do original do
italiano Dario Fo, a Cia. La Mínima e a diretora Neyde Veneziano selecionaram
quatro: “A ressureição de Lázaro”, “O cego e o paralítico”, “O louco e a morte”
e “O jogo do louco debaixo da cruz”. O drama medieval litúrgico representado
pelos mistérios, encena episódios bíblicos com a função exemplar e caráter
popular, utilizando linguagem satírica, mas preservando os cânones da fé
religiosa. Os jograis, artistas de praças públicas e feiras, que levavam essas
narrativas simples a uma plateia igualmente simples, simbolizavam com sua
comicidade as vozes submetidas ao poder, desempenhando o papel de veículos de
parábolas que ascendiam ao céu, mas que sempre desciam à terra. Dario Fo transpõe
o gênero, em sua essência comunicativa e direta, para o mundo atual, nas suas
mazelas e arbitrariedades, no oportunismo e artimanhas, mantendo a contracena
com as origens religiosas. Na sua ácida tradução dos tempos bíblicos para os de
agora, arma-se um circo de aproveitadores em torno do milagre de Jesus na
ressureição de Lázaro. Recorre-se a paralítico que empresta seus olhos a cego para,
juntos e únicos num boneco bizarro, explorarem a boa fé dos doadores de
esmolas. E se debruça sobre louco que participa da cena da crucificação e se
integra, de forma canhestra, na Santa Ceia. Nesta versão, o narrador introduz a
plateia no contexto em que os mistérios surgiram sob a perspectiva de Fo, permitindo
que os diversos estilos, da bufonaria à palhaçaria, do malabarismo à mímica, se
acomodem ao percurso clownesco de La
Mínima. A justaposição de tantos planos expressivos em texto marcado por conjunto
de símbolos religiosos, históricos e artísticos, pode sugerir relativa
dispersão da irreverência crítica e dos signos medievalistas na sua passagem ao
contemporâneo. Mas é pertinente à trajetória do grupo paulista na continuidade
de 15 anos de coerente atividade, o que torna a encenação de “Mistero Buffo” um
exemplar da maturidade e refinamento dos meios que delineiam a companhia. De
certo modo, a montagem se estrutura sob a tipologia de representação dos
palhaços, em que cada um deles desempenha funções na busca do tragicômico. O
trio de atores se distribui na escala de atuação, como músicos, malabaristas, protagonista,
escadas, mímicos, numa hierarquia que explora, não só habilidades técnicas,
como capacidades físicas de transcrever metáforas e desmascarar truques. A
cenografia econômica é ressaltada pelo piso de desenhos geométricos, e o
figurino, entre o branco e o colorido, assinala, com a maquiagem, os traços
desses artífices do riso. A música de Marcelo Pellegrini é um dos maiores
destaques da encenação. Fernando Paz, como músico e presença de apoio, tem
participação muda, mas poeticamente expressiva com sua figura de fragilidade
astuciosa. Fernando Sampaio constrói uma máscara que se fixa ao seu rosto como comentários
sublinhados. Domingos Montagner transmite com segurança a variação de elementos
envolvidos no jogo cênico.