Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (24/9/2014)
Jogo de realidade e ficção em thriller político |
A narrativa deste thriller-político de Harold
Pinter oferece várias encruzilhadas no desenvolvimento da ação que podem levar
o espectador a escolher tantos caminhos quanto a trama insinua. O diretor de
uma instituição, cujos internos são designados ora por números, ora como
pacientes, mantém o poder de maneira utilitária, fraudando a burocracia e se
servindo de auxiliares e detentos na sua ambição de administrador. A gravidez
de uma das internas e o assassinato, sob tortura, de outro deles completam o
clima de mistério e estranhamento causados por presenças enigmáticas que se
movimentam dentro de engrenagem social difusamente repressiva. Quem é
efetivamente o diretor? Quais as razões de suas atitudes? O que explica o
comportamento de quem o cerca? Nenhuma das perguntas encontra resposta
conclusiva, apenas indícios que são a razão mesma de como o autor constrói seu
universo dramático. As entrelinhas, as motivações subjacentes, as pausas entre
intenções obscuras envolvem personagens que não se explicam ou enganam por suas
atitudes contraditórias. É desse jogo de realidade e ficção, em que o humor se contrapõe ao policial e o político
ao individual que Pinter fornece pistas, sem indicar um único sentido que provoque
reações convergentes para decifrar vagas referências. O diretor Ary Coslov circula
por esta “nuvem” de dados sem localizá-los sob determinante ótica cênica.
Movimenta com tantos instrumentos quando o texto oferece (humor, mistério,
ação, absurdo, desvios) o ritmo narrativo, oscilando entre a tensão abstrata e
o cômico embutido, sustentando uma atmosfera imponderável que se desmente
continuamente. Com produção modesta - cenário de poucos elementos mas eficiente
de Ary Coslov, figurino cuidado de Biza Vianna (os sapatos vermelhos da
senhorita Cutts ajudam a compor a personagem) e a iluminação sensível de
Aurélio de Simoni -, “A estufa” tem tradução fluente de Isio Ghelman e Ary
Coslov. Mas o diretor alcança maior voltagem na condução do elenco, que
consegue transmitir as ambiguidades dos personagens em interpretações que se
concretizam em pausas e efusões em ritmada sequência. Mario Borges como o irascível
diretor, atribui pusilanimidade e cinismo às atitudes desconcertantes daquele
que se revela expansivo para esconder manipulações obscuras. O ator demonstra
fina sintonia com o Roote, materializando com humor na medida e subjetividade dosada
a fragmentação de uma personalidade fluída. Um trabalho de íntegra elaboração.
Ísio Ghelman se destaca pela sutileza e dubiedade com que desempenha o papel de
um assessor inescrupuloso de frases de gramática servil e dissimulada. Uma
atuação bem traçada. Marcelo Aquino como um bêbado desenha em gestos largos e
malabarismo dançado um ritual de disfarces que, em alguns momentos, lembra uma
figura de Magritte. Pedro Neschling, em que pese a carga intensa que empresta
ao jovem crédulo, é fiel e coerente à sua composição até o final. Paula
Burlamarqui se sai melhor ao expor fisicamente as manhas sedutoras da senhorita
Cutts. Thiago Justino, perfeito no velho zelador, está mais contido como o fiscal.