Mirada
Pela terceira vez se realiza o Mirada – Festival
Ibero-Americano de Artes Cênicas do Sesc Santos, que durante duas semanas reuniu
na cidade litorânea paulista cerca de 30 espetáculos e que a cada edição
enfatiza a produção de um país. Este ano, o destaque é o Chile com sete
montagens de grupos de linhas bem diversas, com revisão de clássicos e reflexões
sobre a sua recente história político-social. A curadoria da mostra propõe
extensa abrangência geográfica – do Brasil a Portugal, do México a Argentina,
da Espanha ao Peru, de Cuba ao Paraguai, da Colômbia a Costa Rica – dentro da
ideia de iberoamericanidade, ponto de
convergência de estéticas cênicas, ora voltadas para seu ambiente cultural, ora
com pretensões de integrar correntes internacionais.
Puzzle (a) – Brasil
O papel literário borrado e amassado pela realidade |
O quebra-cabeça lítero-teatral proposto pelo
diretor Felipe Hirsch, que faz uma representação do país em quatro fatias – a
última, estreada no lançamento do Mirada 2014 – e que provocou estrondo na
Feira do Livro de Frankfurt, no ano em que o Brasil foi o país homenageado, aponta
vários dardos verbais para estabelecer as fronteiras da contundência e contestação
da nacionalidade. Na mostra santista se apresentou a versão (a), primeira da
série em que mergulha no caos humano e social do Rio, através de algumas de
suas feridas abertas (corrupção, milícia, violência) com desconcertante ironia e
brilhante seleção de textos. Hirsch reuniu fragmentos da obra de autores
pulsantes como André Sant’Anna , Bernardo Carvalho, Jorge Mautner, Juliana
Frank, Nelson de Oliveira, Paulo Leminski e Veronica Stigger, numa vertigem de
cenas em que o papel, folha branca a ser manchada com tinta preta e amassada como
invólucro usado, desconstrói imagens e reconfigura pensamentos. De início, três
atores e um “corretor de idioma”
estão dispostos diante de uma mesa, repetindo em português, espanhol e alemão, texto sexualizado, trio estático de aparente conferência
convencional. Para em seguida, surgir, um policial com discurso de ação repressiva sobre a pobreza, quanto delirante verbalização de conceitos
científicos-filosóficos sobre a vida social contemporânea. São textos, repletos
de sarcasmo e niilismo, atritantes na sua provocativa ironia, projetados por
atores plenamente identificados com o espírito demolidor da encenação. O que
não os restringem no apuro técnico com que percorrem os meandros literários
para expor as peças soltas de realidade enigmática na seus inescapáveis mecanismos cruéis. O destaque do elenco é Magali
Biff, tradução arrasadora do humor sarcástico. É pena que tão vibrante e
transgressor espetáculo não tenha possibilidades de ser visto pelo público
carioca.
Terra de Santo – Brasil
Religiosidade como redenção de forças populares |
Newton Moreno e o grupo paulista Os Fofos Encenam
revelam coerência no seu universo cênico-dramatúrgico voltado para questões de
sexualidade, repressão familiar e religiosa e raízes culturais pernambucanas. Terra de Santo cristaliza essa linha,
como já antecipara em Memória da Cana,
ao fundir dramaticamente Álbum de Família,
de Nelson Rodrigues com excertos de textos de Gilberto Freyre, envoltos em
cenografia rústico-artesanal. Nesta nova encenação, a fórmula se repete sob as
mesmas premissas e semelhante embalagem. As condições sob as quais os
trabalhadores na roça de cana são exploradas por feitores bem mandados pelos
usineiros ganham traços naturalistas. Dividida em duas partes (o conflito
real no barracão da usina e o espaço sagrado da religiosidade), a montagem
estabelece a narrativa a partir da saga da redenção do povo sob a perspectiva
dos elementos formadores da economia e cultura da região. A força popular se afirma
pelo paralelismo entre a manutenção do lugar sagrado e a busca da justiça
social. Ameaçado de ser tomado pela ganância do senhor de engenho, a
religiosidade se transforma em forma de resistência e luta cultural.
As etnias formadoras (branca, negra, índia) se manifestam a partir da
religiosidade (católica, africana e anímica) em rituais abrigados sobre a
ambientação de terreiro de candomblé. Aprisionado entre o viés social-político
de sua proposição ideologizada e um certo reducionismo cênico-ritualístico, Terra de Santo demonstra empenho em ratificar
a mensagem embelezando os meios.
A Imaginação do Futuro – Chile
Pastiche visual de um golpe que chega aos dias de hoje |
La Resentida é um grupo de Santiago com atores na
faixa dos 20 anos que se debruça sobre acontecimentos marcantes da vida
política e social do país sob ótica extremamente provocativa no revisionismo
histórico e no agit-prop da
linguagem. Os últimos dias de Salvador Allende, confinado no Palacio de la
Moneda, pouco antes de seu suicídio-assassinato, nos idos de 1973, são vistos como
preparação de um programa de informação ao país, em que os ministros,
atarantados, desconstrõem o discurso do presidente ameaçado pelo golpe militar.
Os ministros, dublês de marqueteiros, submetem o poder e seu ideário ideológico
a um pastiche visual que incorpora a multiplicidade de meios expressivos
(telões, número de plateia, desmonte agitado das cenas, contraste entre a histeria
e o popularesco) às consequências da queda de Allende nas crises do Chile
contemporâneo. É nesta atualização temporal que A Imaginação do Futuro justifica o título, buscando similitudes das
questões sociais, quebras políticas e da globalidade fracionada como método de localizar e unificar protestos de rua, disparidades econômicas e ações corruptoras e
repressivas dos dias atuais em qualquer parte do mundo. O espetáculo tem força anárquica que desestabiliza a percepção do espectador, levado a reações
extremas de adesão e recusa, de expansão (solicitado a participar contribuindo
com dinheiro) e retração (confrontado com o impacto da fala e figura
contundente da marionete), em permanente emulação de contrários (Allende e o
Chile se articulam por suas contradições). Uma montagem provocativa,
referenciada geograficamente, mas de alcance bem maior do que fazem parecer as
suas citações, historicidade e personagens. A
Imaginação do Futuro estará em cena no Teatro Ginástico de 18 a 21 de
setembro.
Matéria Prima – Espanha
Educação sentimental marcada pela passagem do tempo |
Essa encenação do grupo espanhol La Tristura
trabalha com o efeito de utilizar crianças (na estreia, há quatro anos em
Madri, com elenco com oito anos de idade) para tratar do que se poderia
convencionar de “educação sentimental”. Os textos projetados e ditos pelos
meninos se referem a conceitos formativos e estruturas de comportamento
repassados por aqueles que não teriam idade para vivenciá-los. O choque verbal-etário e o jogo de maturidade e ingenuidade são propostos como exercícios de dramaturgia
cênica, na qual os garotos se investem de papéis (ou seriam proposições
adultas?) que lhe são estranhos. As palavras, mais do que contradizem, reforçam pela disparidade como demonstram no movimento pendular de exposição e reflexão. A
série de cenas em que os textos projetados ganham maior dimensão no palco (há
vários vazios cênicos, que desviam, obrigatoriamente, o olhar para a tela),
adquire o caráter narrativo predominante, que no embate com a participação dos
atores, se não chegam a ser meramente ilustrativo, ao menos fica longe da
contundência pretendida. Os meninos de há quatro anos, cresceram, são
pré-adolescentes com corpos e vozes desprendidos da infância, projetando outra
configuração à proposta da montagem. E mesmo com a oscilante carga dramática de descrença, predominam mesmo pílulas estimulantes de autoajuda, que com o crescimento físico do elenco ajudam a manter, ainda que parcialmente, o impulso criativo original de Matéria Prima.
Banhos Roma – México
Muitos caminhos, nenhum rumo |
O prosaico título desta montagem do Teatro Línea
de Sombra, do México, se refere a uma casa de banhos na cidade de Juarez, entre
tantas outras denominações intrigantes de pessoas, lugares, memórias, músicas, que estão
mencionadas neste confuso e derramado espetáculo. A lembrança de um boxeador se
mistura a violência e relatos de ocorrências corriqueiras, aparentemente
pretendendo buscar referências que capturem complexidades da sociedade mexicana. São
muitos os atalhos cênicos a que se recorre nesta peregrinação por tantos
estímulos visuais e ações físicas. O elenco se movimenta freneticamente, ora
falando sem pausas, ora cantando sem ritmo, numa descontínua perseguição por
recursos díspares que só evidenciam a má utilização da maioria deles. Participação mexicana inexpressiva que evidencia o uso de muitos caminhos sem qualquer rumo.