terça-feira, 16 de setembro de 2014

Festivais

Mirada

Pela terceira vez se realiza o Mirada – Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas do Sesc Santos, que durante duas semanas reuniu na cidade litorânea paulista cerca de 30 espetáculos e que a cada edição enfatiza a produção de um país. Este ano, o destaque é o Chile com sete montagens de grupos de linhas bem diversas, com revisão de clássicos e reflexões sobre a sua recente história político-social. A curadoria da mostra propõe extensa abrangência geográfica – do Brasil a Portugal, do México a Argentina, da Espanha ao Peru, de Cuba ao Paraguai, da Colômbia a Costa Rica – dentro da ideia de iberoamericanidade, ponto de convergência de estéticas cênicas, ora voltadas para seu ambiente cultural, ora com pretensões de integrar correntes internacionais.

Puzzle (a) – Brasil
O papel literário borrado e amassado pela realidade
O quebra-cabeça lítero-teatral proposto pelo diretor Felipe Hirsch, que faz uma representação do país em quatro fatias – a última, estreada no lançamento do Mirada 2014 – e que provocou estrondo na Feira do Livro de Frankfurt, no ano em que o Brasil foi o país homenageado, aponta vários dardos verbais para estabelecer as fronteiras da contundência e contestação da nacionalidade. Na mostra santista se apresentou a versão (a), primeira da série em que mergulha no caos humano e social do Rio, através de algumas de suas feridas abertas (corrupção, milícia, violência) com desconcertante ironia e brilhante seleção de textos. Hirsch reuniu fragmentos da obra de autores pulsantes como André Sant’Anna , Bernardo Carvalho, Jorge Mautner, Juliana Frank, Nelson de Oliveira, Paulo Leminski e Veronica Stigger, numa vertigem de cenas em que o papel, folha branca a ser manchada com tinta preta e amassada como invólucro usado, desconstrói imagens e reconfigura pensamentos. De início, três atores e um “corretor de idioma” estão dispostos diante de uma mesa, repetindo em português, espanhol e alemão, texto sexualizado, trio estático de aparente conferência convencional. Para em seguida, surgir, um policial com discurso de ação repressiva sobre a pobreza, quanto delirante verbalização de conceitos científicos-filosóficos sobre a vida social contemporânea. São textos, repletos de sarcasmo e niilismo, atritantes na sua provocativa ironia, projetados por atores plenamente identificados com o espírito demolidor da encenação. O que não os restringem no apuro técnico com que percorrem os meandros literários para expor as peças soltas de realidade enigmática na seus inescapáveis mecanismos cruéis. O destaque do elenco é Magali Biff, tradução arrasadora do humor sarcástico. É pena que tão vibrante e transgressor espetáculo não tenha possibilidades de ser visto pelo público carioca.      

Terra de Santo – Brasil
Religiosidade como redenção de forças populares
Newton Moreno e o grupo paulista Os Fofos Encenam revelam coerência no seu universo cênico-dramatúrgico voltado para questões de sexualidade, repressão familiar e religiosa e raízes culturais pernambucanas. Terra de Santo cristaliza essa linha, como já antecipara em Memória da Cana, ao fundir dramaticamente Álbum de Família, de Nelson Rodrigues com excertos de textos de Gilberto Freyre, envoltos em cenografia rústico-artesanal. Nesta nova encenação, a fórmula se repete sob as mesmas premissas e semelhante embalagem. As condições sob as quais os trabalhadores na roça de cana são exploradas por feitores bem mandados pelos usineiros ganham traços naturalistas. Dividida em duas partes (o conflito real no barracão da usina e o espaço sagrado da religiosidade), a montagem estabelece a narrativa a partir da saga da redenção do povo sob a perspectiva dos elementos formadores da economia e cultura da região. A força popular se afirma pelo paralelismo entre a manutenção do lugar sagrado e a busca da justiça social. Ameaçado de ser tomado pela ganância do senhor de engenho, a religiosidade se transforma em forma de resistência e luta cultural. As etnias formadoras (branca, negra, índia) se manifestam a partir da religiosidade (católica, africana e anímica) em rituais abrigados sobre a ambientação de terreiro de candomblé. Aprisionado entre o viés social-político de sua proposição ideologizada e um certo reducionismo cênico-ritualístico, Terra de Santo demonstra empenho em ratificar a mensagem embelezando os meios.   

A Imaginação do Futuro – Chile
Pastiche visual de um golpe que chega aos dias de hoje
La Resentida é um grupo de Santiago com atores na faixa dos 20 anos que se debruça sobre acontecimentos marcantes da vida política e social do país sob ótica extremamente provocativa no revisionismo histórico e no agit-prop da linguagem. Os últimos dias de Salvador Allende, confinado no Palacio de la Moneda, pouco antes de seu suicídio-assassinato, nos idos de 1973, são vistos como preparação de um programa de informação ao país, em que os ministros, atarantados, desconstrõem o discurso do presidente ameaçado pelo golpe militar. Os ministros, dublês de marqueteiros, submetem o poder e seu ideário ideológico a um pastiche visual que incorpora a multiplicidade de meios expressivos (telões, número de plateia, desmonte agitado das cenas, contraste entre a histeria e o popularesco) às consequências da queda de Allende nas crises do Chile contemporâneo. É nesta atualização temporal que A Imaginação do Futuro justifica o título, buscando similitudes das questões sociais, quebras políticas e da globalidade fracionada como método de localizar e unificar protestos de rua, disparidades econômicas e ações corruptoras e repressivas dos dias atuais em qualquer parte do mundo. O espetáculo tem força anárquica que desestabiliza a percepção do espectador, levado a reações extremas de adesão e recusa, de expansão (solicitado a participar contribuindo com dinheiro) e retração (confrontado com o impacto da fala e figura contundente da marionete), em permanente emulação de contrários (Allende e o Chile se articulam por suas contradições). Uma montagem provocativa, referenciada geograficamente, mas de alcance bem maior do que fazem parecer as suas citações, historicidade e personagens. A Imaginação do Futuro estará em cena no Teatro Ginástico de 18 a 21 de setembro.  

Matéria Prima – Espanha
Educação sentimental marcada pela passagem do tempo
Essa encenação do grupo espanhol La Tristura trabalha com o efeito de utilizar crianças (na estreia, há quatro anos em Madri, com elenco com oito anos de idade) para tratar do que se poderia convencionar de “educação sentimental”. Os textos projetados e ditos pelos meninos se referem a conceitos formativos e estruturas de comportamento repassados por aqueles que não teriam idade para vivenciá-los. O choque verbal-etário e o jogo de maturidade e ingenuidade são propostos como exercícios de dramaturgia cênica, na qual os garotos se investem de papéis (ou seriam proposições adultas?) que lhe são estranhos. As palavras, mais do que contradizem, reforçam pela disparidade como demonstram no movimento pendular de exposição e reflexão. A série de cenas em que os textos projetados ganham maior dimensão no palco (há vários vazios cênicos, que desviam, obrigatoriamente, o olhar para a tela), adquire o caráter narrativo predominante, que no embate com a participação dos atores, se não chegam a ser meramente ilustrativo, ao menos fica longe da contundência pretendida. Os meninos de há quatro anos, cresceram, são pré-adolescentes com corpos e vozes desprendidos da infância, projetando outra configuração à proposta da montagem. E mesmo com a oscilante carga dramática de descrença, predominam mesmo pílulas estimulantes de autoajuda, que com o  crescimento físico do elenco ajudam a manter, ainda que parcialmente, o impulso criativo original de Matéria Prima.     

Banhos Roma – México
Muitos caminhos, nenhum rumo

O prosaico título desta montagem do Teatro Línea de Sombra, do México, se refere a uma casa de banhos na cidade de Juarez, entre tantas outras denominações intrigantes de pessoas, lugares, memórias, músicas, que estão mencionadas neste confuso e derramado espetáculo. A lembrança de um boxeador se mistura a violência e relatos de ocorrências corriqueiras, aparentemente pretendendo buscar referências que capturem complexidades da sociedade mexicana. São muitos os atalhos cênicos a que se recorre nesta peregrinação por tantos estímulos visuais e ações físicas. O elenco se movimenta freneticamente, ora falando sem pausas, ora cantando sem ritmo, numa descontínua perseguição por recursos díspares que só evidenciam a má utilização da maioria deles. Participação mexicana inexpressiva que evidencia o uso de muitos caminhos sem qualquer rumo.