quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Temporada 2014

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (27/8/2014)

Crítica/ Meu Deus! 
Psicóloga enfrenta depressão milenar de Deus

A comédia da israelense Anat Gov vive de uma situação única que é desenvolvida com poucos recursos, o que dificulta sustentar a trama para além da ideia inicial. A psicóloga Ana aceita receber em sua casa-consultório misterioso paciente para uma primeira sessão sem que se saiba a razão pela qual facilita a presença de tal desconhecido em meio ao desgaste do dia e à necessidade de acomodar o horário e dar atenção e cuidados ao filho autista. Quem chega, cheio de dúvidas existenciais e carências depressivas, é ninguém menos do que o Todo-Poderoso, Deus consubstanciado numa figura humana, tão comum como aquelas que criou à sua imagem e semelhança. Apresentados os personagens para caracterizá-los em invertidos e surpreendentes papéis, Ana se convence, apesar do seu ateísmo, de que está diante de quem não acredita, e inicia o tratamento, enfrentado a dificuldade de analisá-lo pela ausência de pai e mãe de Deus. A melhor e única boa piada do texto. O diálogo entre o deprimido há dois mil anos e a mulher cheia de problemas desencadeia cobranças mútuas: ela, sobre a criação: ele, sobre a ação destrutiva do homem. E sucedem-se passagens bíblicas e citações ao Antigo Testamento, que se pretendem exemplares como pílulas de autoajuda e leves críticas à desorganização humana. A mudança de rumo transforma a narrativa, até então uma comédia promissora, em texto pretensamente reflexivo, com série de falas politicamente corretas e indisfarçável tom choroso. A boa ideia de Gov sucumbe a sua ambição à seriedade. O diretor Elias Andreato fixou-se no que o texto oferece como oportunidade para dois atores experientes, e não se desviou desta linha numa montagem que segue, sem sobressaltos e nenhum brilho, o convencionalismo da autora. O artificial jardim de plástico do cenário de Antonio Junior, a sobriedade do figurino de Fause Haten e a iluminação sem firulas de Wagner Freire enquadram a procura pela correção do diretor. Pedro Carvalho se faz presente como o garoto autista. Dan Stulbach enfrenta, e perde, a tendência de acentuar o humor na construção de um Deus em crise. Com algum exagero, no tom que imprime à voz e na excessiva gesticulação, o ator até arrisca brincar com a parceira de palco, mas está pouco convincente na maioria das cenas. Irene Ravache é quem melhor interpreta a absurda visita ao consultório de Ana, mantendo com ar desconfiança brincalhona e divertido descrédito as atitudes e reações da personagem.