Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (8/8/2014)
Crítica/ Ópera do
Malandro
Trilhas divergentes da malandragem |
Quando John Gay exibiu as mazelas dos burgueses
do século XVIII sabia como incomodar os espectadores. Bertolt Brecht, seguindo
sua trilha, se voltou para os cortiços de Londres para traçar a teia de
convivência social que sustenta o frágil edifício da moralidade e do jogo
econômico. Chico Buarque de Holanda foi tão investigativo quanto os seus
inspiradores na Ópera do Malandro, nacionalizando as mazelas e abrasileirando
a teia no Estado Novo das concentrações do Dia do Trabalho no Estádio de São
Januário e das importações de nylon e de matéria plástica. Essa transposição,
servida por excelente trilha musical, nem sempre alcança equilíbrio entre exposição
e síntese, clareza e comunicabilidade para narrativa que se pretende metáfora e
paralelo do Brasil sob o regime militar, época em que foi escrita. O recurso de
usar o teatro como forma de comentar e distanciar a ação para provocar a
reflexão na plateia, se de início ainda funciona, ao final demonstra a
dificuldade de integrar os dois planos. E as canções, definitivas para além da
função dramática para a qual foram originalmente compostas, ilustram com a poesia
rascante das letras e a qualidade da música o entrecho. A direção de João
Falcão tomou rumos divergentes indicados pela dramaturgia de Chico. A montagem
passa ao largo de situar o momento em que a história se passa, menos ainda em encontrar
ressonância com a atualidade, esvaziando a ambientação social e reforçando o hibridismo
cênico. A escolha de elenco masculino, com exceção de uma atriz que interpreta
papel de João Alegre, é duvidosa ao caricaturar a figura do travesti. O diretor
não cria qualquer efeito de distanciamento, ao contrário, confunde e descaracteriza.
A cenografia de Aurora dos Campos, uma estrutura tubular pesada, confinada no
fundo do palco, fica descolada das cenas, a maioria delas em primeiro plano e com
invariável frontalidade. A utilização de praticáveis móveis, também com
estrutura tubular, é um tanto inusitada, com atores entrando ou saindo de cena
por entre as ferragens. O figurino de Kika Lopes não deixa dúvidas na aposta nos
exageros do transformismo e a iluminação de Cesar de Ramires acompanha o colorido
feérico das roupas. A direção musical e os arranjos de Beto Lemos embalam o
excelente repertório. A coreografia de Rodrigo Marques investe no convencional.
Por mais que se conheçam as canções, e algumas delas são sucessos há décadas –
“Geni e o Zepelim”, “ Folhetim”, “ O meu amor”, “Pedaço de mim”, “Terezinha” – reencontrá-las
no contexto do espetáculo pode ainda ser surpreendente, mesmo quando o ritmo um
tanto lento da direção e as vozes ajustadas ao feminino deixem escapar muito de
sua força na trama. Larissa Luz tem presença tímida como João Alegre, o
condutor da narrativa. Eduardo Landim apela a todo tipo de maneirismo para explorar
cada um deles ao cantar a Geni. Fábio Enriquez adota, com trejeito corporal e
voz bem colocada, o travestismo como Teresinha. Moyseis Marques é um Max
apagado e sem poder de sedução. Os
demais atores – Ricca Barros (Duran), Adrén Alves (Vitória), Alfredo Del Penho
(Chaves), Léo Bahia (Lúcia), Renato Luciano (Fichinha), Eduardo Rios (General
Eletric), Bruce de Araújo (Johnny Walker), Davi Guil;herme (Mimi Bibelô),
Thomás Aquino (Jussara Pé de Anjo) e Rafael Cavalcanti (Dóris Pelanca) – compõem
um quadro exuberante, perfeito para a versão do diretor.