sábado, 23 de agosto de 2014

Temporada 2014

Os porões da existência e da ditadura no Espaço Sesc

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (22/8/2014)

Crítica/ Da Vida das Marionetes
A falta de comunicação à mesa de personagens ocupando lugares disfuncionais
Roteiro teatral de Ingmar Bergman, saído do seu filme de 1980, “Da vida das marionetes” manipula cordéis invisíveis e liames subjetivos de sentimentos imponderáveis, expostos com o realismo das situações e camuflados pela irrealidade da falta de sentido. Se o tédio pode ser uma das razões para gestos desprovidos de qualquer justificativa, a complexa e obscura teia das relações denuncia a impossibilidade de diálogo, desgastado pelos limites da palavra que asfixia os verdadeiros impulsos. Peter Egermann assassina uma prostituta, ato que a narrativa não tenta desvendar, muito menos atribuir avaliação moral ou encontrar intenções. A atitude em si representa, não apenas, a concretização de um momento de insanidade, mas forças desconhecidas que movem Peter e, em controlada medida, aqueles que estão à sua volta, emprestando de marionetes movimentos que escapam a seu domínio. Silêncio ruidoso, drama econômico, densidade seca, fotografia sem contrastes, olhar distanciado, pedaços descolados se mostram numa sequência de falas curtas, quase monólogos, como iluminações difusas de porões sombrios. Guilherme Leme afinou o seu estilo formalista a essa construção de sabor amargo e tonalidade desfocada. A cenografia de Fernando Alexim horizontaliza o espaço com uma longa mesa, que tem seus disfuncionais lugares ocupados por sincronizada coreografia e lineares intervenções. A iluminação de Vitor Emanuel reforça esse alongamento com  feixe luminoso que distende a incomunicabilidade dos personagens. A trilha sonora de Marcello H. segue o mesmo depuramento elegante e frio dos demais elementos da montagem. O diretor propõe o descarnamento de emoções através da higienização de meios, buscando na plasticidade e ritualização traduzir o que está encoberto no confronto entre a palavra crua e a imagem ascética. Ao visual limpo se acrescenta o distanciamento na interpretação do elenco, com os atores exibindo os conflitos dos personagens sem tensões dramáticas e psicológicas. Pedro Osório é quem melhor incorpora essa atuação seca, projetando as explosões interiores de Peter com oscilações sutis de voz. Luiz Furnaletto empresta dubiedade ao comportamento do psiquiatra. Milena Toscano não transmite as hesitações da estilista de moda, casada com Peter. Sandra Barsotti mostra tendência a dramatizar a incompreensão da mãe. Claudia Mauro cria corporalmente a prostituta e Arnaldo Marques deixa escapar, com algum maneirismo, o monólogo de Tim.   

Crítica/ Casa da Morte 
Exposição de ação política perversa
O autor espanhol Fermín Cabal se debruça sobre a ditadura militar chilena, sem a nomear, para penetrar nos porões da tortura e da negação da liberdade, não como um panfleto teatral, mas como um mergulho em projeções diversas sobre suas vítimas. Canarinho é torturada e depõe como encontrou a morte. Sua companheira de cela fala como delatora e demonstra as suas razões. O coveiro do cemitério se rebela contra a banalização da morte pelos militares, e em protesto e com risco de desaparecer, desenterra cadáveres. E a médica que atende Canarinho depois de sessões de tortura é questionada sobre o estado físico que levou a mulher à morte. Em monólogos, cada um toca na ação política perversa sob a perspectiva e as ressonâncias de como o período atuou e marcou suas vidas. Não se faz qualquer proselitismo ou tomada de posição, os “fatos” se demonstram por si mesmos e recebem tratamento dramatúrgico desprovido de ênfases ou oscilações dramáticas. Há uma secura proposital, sem quaisquer adereços narrativos, o que ressalta a crueza do que é dito. A dramaturgia, ou seria uma adaptação incisiva de Fátima Saadi?, deixa ainda mais expostos os monólogos-depoimentos, formato que serve, igualmente com eficácia, à montagem de Antonio Guedes. Com cenário de Doris Rollemberg, que além de projeções, tira partido da sonoridade rascante de microfones, reforça na ambientação o despojamento imprimido pelo diretor. Guedes desvia-se desta linha quando tenta estabelecer relação direta e traçar frágeis paralelismos, seja temporal ou sócio-político, através de imagens identificáveis de acontecimentos recentes no país. O trio de atores acompanha o caráter expositivo das suas intervenções, com menos resultado com Priscila Amorim (Canarinho), alguma reverberação no distanciamento interpretativo de Marcos França, e na melhor construção com Fernanda Maia.