Os porões da
existência e da ditadura no Espaço Sesc
Crítica do Segundo Caderno de O Globo (22/8/2014)
Crítica/ Da
Vida das Marionetes
A falta de comunicação à mesa de personagens ocupando lugares disfuncionais |
Roteiro teatral de
Ingmar Bergman, saído do seu filme de 1980, “Da vida das marionetes” manipula
cordéis invisíveis e liames subjetivos de sentimentos imponderáveis, expostos
com o realismo das situações e camuflados pela irrealidade da falta de sentido.
Se o tédio pode ser uma das razões para gestos desprovidos de qualquer
justificativa, a complexa e obscura teia das relações denuncia a
impossibilidade de diálogo, desgastado pelos limites da palavra que asfixia os
verdadeiros impulsos. Peter Egermann assassina uma prostituta, ato que a
narrativa não tenta desvendar, muito menos atribuir avaliação moral ou
encontrar intenções. A atitude em si representa, não apenas, a concretização de
um momento de insanidade, mas forças desconhecidas que movem Peter e, em
controlada medida, aqueles que estão à sua volta, emprestando de marionetes
movimentos que escapam a seu domínio. Silêncio ruidoso, drama econômico,
densidade seca, fotografia sem contrastes, olhar distanciado, pedaços
descolados se mostram numa sequência de falas curtas, quase monólogos, como
iluminações difusas de porões sombrios. Guilherme Leme afinou o seu estilo formalista
a essa construção de sabor amargo e tonalidade desfocada. A cenografia de
Fernando Alexim horizontaliza o espaço com uma longa mesa, que tem seus
disfuncionais lugares ocupados por sincronizada coreografia e lineares
intervenções. A iluminação de Vitor Emanuel reforça esse alongamento com feixe luminoso que distende a
incomunicabilidade dos personagens. A trilha sonora de Marcello H. segue o
mesmo depuramento elegante e frio dos demais elementos da montagem. O diretor
propõe o descarnamento de emoções através da higienização de meios, buscando na
plasticidade e ritualização traduzir o que está encoberto no confronto entre a
palavra crua e a imagem ascética. Ao visual limpo se acrescenta o
distanciamento na interpretação do elenco, com os atores exibindo os conflitos
dos personagens sem tensões dramáticas e psicológicas. Pedro Osório é quem
melhor incorpora essa atuação seca, projetando as explosões interiores de Peter
com oscilações sutis de voz. Luiz Furnaletto empresta dubiedade ao
comportamento do psiquiatra. Milena Toscano não transmite as hesitações da
estilista de moda, casada com Peter. Sandra Barsotti mostra tendência a
dramatizar a incompreensão da mãe. Claudia Mauro cria corporalmente a
prostituta e Arnaldo Marques deixa escapar, com algum maneirismo, o monólogo de
Tim.
Crítica/ Casa da
Morte
O autor espanhol Fermín Cabal se debruça sobre a
ditadura militar chilena, sem a nomear, para penetrar nos porões da tortura e
da negação da liberdade, não como um panfleto teatral, mas como um mergulho em projeções diversas sobre suas vítimas. Canarinho é torturada e depõe como encontrou a morte. Sua companheira de cela fala como delatora e demonstra as suas razões. O
coveiro do cemitério se rebela contra a banalização da morte pelos militares, e
em protesto e com risco de desaparecer, desenterra cadáveres. E a médica que
atende Canarinho depois de sessões de tortura é questionada sobre o estado
físico que levou a mulher à morte. Em monólogos, cada um toca na ação política
perversa sob a perspectiva e as ressonâncias de como o período atuou e marcou suas vidas. Não se
faz qualquer proselitismo ou tomada de posição, os “fatos” se demonstram por si
mesmos e recebem tratamento dramatúrgico desprovido de ênfases ou oscilações
dramáticas. Há uma secura proposital, sem quaisquer adereços narrativos, o que ressalta
a crueza do que é dito. A dramaturgia, ou seria uma adaptação incisiva de Fátima Saadi?, deixa ainda mais expostos
os monólogos-depoimentos, formato que serve, igualmente com eficácia, à
montagem de Antonio Guedes. Com cenário de Doris Rollemberg, que além de
projeções, tira partido da sonoridade rascante de microfones, reforça na ambientação o despojamento imprimido pelo diretor. Guedes desvia-se desta linha quando tenta estabelecer relação direta e traçar frágeis paralelismos, seja temporal ou sócio-político, através de imagens identificáveis de acontecimentos recentes no país. O trio de atores
acompanha o caráter expositivo das suas intervenções, com menos resultado com
Priscila Amorim (Canarinho), alguma reverberação no distanciamento interpretativo de Marcos
França, e na melhor construção com Fernanda Maia.