quinta-feira, 5 de junho de 2014

Temporada 2014

Crítica/ Festa de Família
Crítica/ O Funeral
Celebração dos subterrâneos domésticos
Em 2009, Bruce Gomlevsky estreou Festa de Família, adaptação teatral de filme baseado no movimento cinematográfico dinamarquês, Dogma 95. Dois anos depois, a continuação no palco surgiria com O Funeral, que o mesmo Bruce apresenta ao lado de Festa, no Mezzanino do Espaço Sesc. Rever a montagem de há cinco anos, com modificações no elenco, e assistir à estreia do novo texto, consolidam a integridade autoral de dramaturgia de carga emocional e a persistência de direção segura. No primeiro texto, família se reúne para celebrar os 60 anos do patriarca, e em volta da mesa surgem os subterrâneos de sentimentos reveladores. Pedofilia, preconceito racial, violência doméstica e suicídio, num desfiar de hipocrisia e perversidade, de silêncio e agressão, de mentiras e verdades, numa sequência servida ao longo da refeição. Cada comensal é ator dessa celebração involuntária à verdade, integrantes da confraria de revelações encobertas, que explodem por entre rituais de dissimulação. No segundo texto, a mesma família se reúne, dez anos depois, em torno do funeral do patriarca, e as fraturas do passado são dimensionadas pela passagem do tempo, mas mantidas na mesma temperatura alterada. O reencontro não se dá sob a zona doméstica sombria da comemoração, já que agora, com os papéis delineados, os comportamentos são exacerbados, e a narrativa se utiliza de mecanismos previsíveis e dramaticamente mais fáceis (o determinismo genético na reprodução de atitudes e na presença do morto em diálogo com os vivos).  Bruce Gomlevsky tensiona na direção de ambos os textos, atmosfera que evidencia as dissonâncias individuais em meio a ritualização coletiva. As minudências de atitudes e gestos à mesa, em que a cada intervenção sofre o impacto do desvendamento do que fica encoberto pelos pratos servidos, pode ser compartilhado pelos 40 espectadores, colocados em proximidade de respiração. No elenco, Bruce dosa a pulsão interior do personagem, sem acentuar a sua carga emocional. Jaime Leibovitch desenha em traço fino o cinismo e o jeito bonachão do patriarca. Gustavo Damasceno não extrapola do tom sanguíneo do irmão, e Luiza Maldonado projeta a instabilidade da irmã. Carolina Chalita coloca-se em plano criteriosamente coadjuvante. Os demais atores – João Lucas Romero, Thiago Guerrante, Glauce Guima, Ricardo Ventura, Felipe Cabral, Luiz Felipe Lucas, Sofia Viamonte, Silvio Matos e Xuxa Lopes -  compõem o borrado quadro familiar.

O enterro da família terminal
 No espaço ao lado, também desenhado por Bel Lobo, acontece O Funeral, em que Bruce acentua a dramaticidade mais expandida da narrativa para sublinhá-la com trilha sonora, iluminação envolvente (Elisa Tandeta que assina a luz cria belos efeitos, como o do lago) e interpretações que reforçam o clima doentio. Bruce repete com pequenas variantes os conflitos de Christian. Jaime Leibovitch, apesar da irrealidade na qual flutua a voz do morto, sustenta a sua atuação. Luiza Maldonado revela o  tão pouco que as falas rascantes da irmã se modificaram. Gustavo Damasceno mantém o sangue quente do personagem, enquanto João Lucas Romero se encaixa bem, uma vez mais, como o cozinheiro. Xuxa Lopes encontra no corpo a variação do tempo e da fragilidade da matriarca. O garoto Raul Guaraná tem na sua infantilidade, o efeito que provoca a sua presença. Thalita Godoi, em que pese a cena em que se submete às provocações do sogro morto, dispensável pela sua gratuidade dramática, revela domínio na intensidade emocional da personagem. Carolina Chalita é quem registra as mudanças da criada para a esposa com maior adensamento, e quem se defronta, em detalhes de interpretação, com o desequilíbrio de família em fase terminal.