Crítica/ Festa de
Família
Crítica/ O Funeral
Celebração dos subterrâneos domésticos |
Em 2009, Bruce Gomlevsky estreou Festa de Família, adaptação teatral de
filme baseado no movimento cinematográfico dinamarquês, Dogma 95. Dois anos
depois, a continuação no palco surgiria com O
Funeral, que o mesmo Bruce apresenta ao lado de Festa, no Mezzanino do Espaço Sesc. Rever a montagem de há cinco
anos, com modificações no elenco, e assistir à estreia do novo texto, consolidam
a integridade autoral de dramaturgia de carga emocional e a persistência de direção
segura. No primeiro texto, família se reúne para celebrar os 60 anos do
patriarca, e em volta da mesa surgem os subterrâneos de sentimentos reveladores.
Pedofilia, preconceito
racial, violência doméstica e suicídio, num desfiar de hipocrisia e perversidade,
de silêncio e agressão, de mentiras e verdades, numa sequência servida ao longo
da refeição. Cada comensal é ator dessa celebração involuntária à verdade,
integrantes da confraria de revelações encobertas, que explodem por entre
rituais de dissimulação. No segundo texto, a mesma família se reúne, dez anos
depois, em torno do funeral do patriarca, e as fraturas do passado são
dimensionadas pela passagem do tempo, mas mantidas na mesma temperatura alterada.
O reencontro não se dá sob a zona doméstica sombria da comemoração, já que
agora, com os papéis delineados, os comportamentos são exacerbados, e a
narrativa se utiliza de mecanismos previsíveis e dramaticamente mais fáceis (o
determinismo genético na reprodução de atitudes e na presença do morto em diálogo
com os vivos). Bruce Gomlevsky tensiona
na direção de ambos os textos, atmosfera que evidencia as dissonâncias
individuais em meio a ritualização coletiva. As minudências de atitudes e
gestos à mesa, em que a cada intervenção sofre o impacto do desvendamento do
que fica encoberto pelos pratos servidos, pode ser compartilhado pelos 40
espectadores, colocados em proximidade de respiração. No elenco, Bruce dosa a
pulsão interior do personagem, sem acentuar a sua carga emocional. Jaime
Leibovitch desenha em traço fino o cinismo e o jeito bonachão do patriarca.
Gustavo Damasceno não extrapola do tom sanguíneo do irmão, e Luiza Maldonado projeta a instabilidade da irmã. Carolina Chalita coloca-se em plano criteriosamente
coadjuvante. Os demais atores – João Lucas Romero, Thiago Guerrante, Glauce
Guima, Ricardo Ventura, Felipe Cabral, Luiz Felipe Lucas, Sofia Viamonte,
Silvio Matos e Xuxa Lopes - compõem o borrado
quadro familiar.
O enterro da família terminal |
No espaço ao
lado, também desenhado por Bel Lobo, acontece O Funeral, em que Bruce
acentua a dramaticidade mais expandida da narrativa para sublinhá-la com trilha
sonora, iluminação envolvente (Elisa Tandeta que assina a luz cria belos
efeitos, como o do lago) e interpretações que reforçam o clima doentio. Bruce
repete com pequenas variantes os conflitos de Christian. Jaime Leibovitch,
apesar da irrealidade na qual flutua a voz do morto, sustenta a sua atuação. Luiza Maldonado revela o tão pouco que as falas rascantes da irmã se modificaram. Gustavo Damasceno mantém o sangue quente do personagem,
enquanto João Lucas Romero se encaixa bem, uma vez mais, como o cozinheiro.
Xuxa Lopes encontra no corpo a variação do tempo e da fragilidade da matriarca.
O garoto Raul Guaraná tem na sua infantilidade, o efeito que provoca a sua
presença. Thalita Godoi, em que pese a cena em que se submete às provocações do
sogro morto, dispensável pela sua gratuidade dramática, revela domínio na
intensidade emocional da personagem. Carolina Chalita é quem registra as
mudanças da criada para a esposa com maior adensamento, e quem se defronta, em
detalhes de interpretação, com o desequilíbrio de família em fase terminal.