quarta-feira, 18 de junho de 2014

Temporada 2014

O autor inglês Mike Bartlett está com duas peças em cartaz nos teatros cariocas: Contrações (Centro Cultural Banco do Brasil) e Cock –Briga de Galo (Teatro Poeira). É a oportunidade de avaliar, através de um mesmo dramaturgo, aspectos da nova criação dramática britânica. (Leia as críticas abaixo).


Crítica do Segundo Caderno de O Globo (11/6/2014)

Crítica/ Contrações
Terror corporativo através da negação
O inglês Mike Bartlett redimensiona, através da linguagem retirada da própria situação realista de que se utiliza para construir a sua narrativa, o eixo dramático em torno do qual os mecanismos de poder se normatizam como valor absoluto. A funcionária Emma é informada pela gerente que, contratualmente, estão vetados quaisquer relacionamentos, amorosos ou sexuais, com colegas da empresa. Da primeira ida de Emma à sala da gerente, um contato artificialmente amistoso, e antecipadamente ameaçador, se sucedem tantos outros, que em progressão, desumanizam e destroem a possibilidade de afirmação de sentimentos e expressão da individualidade. O exercício de dominação, que a cada diálogo ganha contornos mais invasivos, está fundamento em normas e regras de fidelidade baseadas na prática do terror pela negação. Bartlett reproduz a terminologia empresarial, emprestando significados cínicos aos métodos corporativos, em contraponto ao aniquilamento das vontades e escolhas privadas. É sobre o uso manipulador da palavra, encoberta pela mentirosa procura de sua exatidão burocrática que o autor desenvolve as personagens, ambas submetidas à dissonância da voz administrativa e anuladora. O prólogo anuncia com comentários sonoros irônicos – a cada cena é atribuída um gênero musical, introduzido por ruidosa bateria – o compasso nivelador, que transforma Emma e sua superiora na refração de uma mesma obscuridade funcional. O aspecto seriado das cenas e o repetido formato do diálogo conferem desidratação de dramaticidade, que sofre alguma quebra na parte final, mas sem comprometer a secura expositiva e a tensão subjetiva dominantes no restante do tempo. A diretora Grace Pasô e o cenógrafo André Cortez subvertem o realismo da cena com atuações de intensidade fria e desvendamento dos bastidores. A equipe técnica integra a montagem, sendo vista através das janelas do escritório da gerente, operando som e luz nesta área de escape para onde Emma se refugia e explode sua raiva impotente. Um duto de refrigeração expele ar que congela a temperatura emocional, nivelando as personagens no mesmo grau de sujeição às regras empresariais. A diretora explora o rompimento dos limites do espaço da representação como área de sentimentos, construída em solo árido e asséptico dos desempenhos controlados. Grace Pasô não evita os excessos que o texto acrescenta à narrativa enxuta, como no corpo de Emma que se curva e se cobre de terra, metáforas físicas, e pouco inspiradas, do esfacelamento crescente de identidade. Débora Falabella valoriza  a composição corporal como centro de sua interpretação, demonstrando menor intimidade no manuseio da crueza da palavra. Yara de Novaes tensiona corpo e palavra num embate em que mantém subjetividade velada, equilibrando o papel exteriorizado de representante da empresa e a interioridade silenciosa de quem não se deixa ver. Uma interpretação irretocável. 

Crítica/ Cock – Briga de Galo
Manipulação de pistas em disputa amorosa
O jogo que Bartlett estabelece entre os três personagens centrais nesta narrativa de contornos realistas não ultrapassa a manipulação de pistas. O casal masculino, vivendo relacionamento afetivo de alguma estabilidade, apresenta fraturas quando um deles se diz apaixonado por uma mulher. Criado o triângulo, em que os vértices se estranham, mas não se separam, um quarto, o pai daquele que se sente desprezado, surge como fiel da balança em jantar em que ficará decidido com que ficará o rapaz. Numa construção convencional, o truque de Bartlett é muito mais cênico do que dramático. Como os personagens não demonstram força para decidir sobre suas vidas, já que todos se estiolam em permanente estado de hesitação, fica-se sem saber, efetivamente, quais as razões das suas dúvidas. No vai e vem de quem fica com quem, os três parecem tão desprovidos de verdadeiro interesse mútuo, que suas atitudes correspondem a meras vontades superficiais. O que ressalta está na forma como o autor reveste tão frágil narrativa de despojamento, nada inovador, mas pelo menos atenuante à linearidade das falsas emoções. Elimina-se, praticamente, a cenografia. Os atores são postos numa rinha sem adereços para que possam disputar-se como personagens ou medir forças como intérpretes. Sugestão do autor que a diretora Inez Viana segue à risca e o elenco aproveita apenas em parte. Felipe Lima eleva as idas e vindas do rapaz, dividido entre o amante e a garota, a temperatura que se avizinha ao explosivo, muito acima da medida do personagem. Débora Lamm se mantém num mesmo plano, sem nuanças, da sedução ao duelo final. Marcio Machado acentua em interpretação carregada de trejeitos a desinteressante figura do outro amante na disputa. Hélio Ribeiro faz o possível para dar veracidade ao pai de extemporânea presença.