sexta-feira, 28 de março de 2014

Temporada 2014

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (26/3/2014)
Crítica/ Uma Vida Boa
Conflitos interiores no jogo de esconder e descobrir
Rafael Primot, autor da versão teatral de história verdadeira, transformada no filme “Meninos não choram”, segue a trilha dos acontecimentos reais, mais como registro factual do que como subjetivação dramática. Garota abandona sua pequena cidade no interior dos Estados Unidos para tentar atenuar os embates que sua aparência e sensibilidade de garoto desencadeiam em outro ambiente social. O pacto amoroso com jovem cantora e a violência de ex-detento que encontra  na nova cidade despertam reações extremadas, ampliando os conflitos interiores de quem vive a dualidade de gêneros. A narrativa, mesmo sem linearidade expositiva da ação, se desenrola, baseada em datas e situações demarcadas naturalisticamente, fixando o drama pelo documental. A personagem se revela pelas características externas e se distancia da complexidade individual, ultrapassada pela virulência imposta à sua trajetória até o brutal desenlace. A montagem de Diogo Liberano reverte o aspecto mais generalista da dramaturgia, centrando-se nas contradições de físico e forma, identidade e distinção, esconder e descobrir, desenhando o entrechoque com traços oníricos. A plasticidade da sóbria e cirúrgica cenografia de Brunella Provvidente, a excelente iluminação de Daniela Sanchez, autêntica codiretora, o múltiplo figurino de Bruno Perlatto e a trilha sonora original de Diogo Ahmed Pereira são o enquadramento para encenação de um espaço emocional. É a partir da figura dos atores, que se movimentam em intenso ritmo de obscuras trocas, que o diretor explora os gestos reveladores nas constantes mudanças de roupas, numa coreografia de desvendamento, e na tensão corporal, numa luta de opostos. A direção de movimento de João Pedro Madureira é decisiva para que a ação física adquira efeito simbólico na interpretação do trio de atores. Amanda Vides Veras estende um fio sutil entre a composição detalhada da aparência e a interpretação intensa de fragilidades. A atriz consegue levar a personagem para além do papel de vítima, do preconceito e da agressão, para alcançá-la na sua dimensão humana. Julianne Trevisol se apropria, crescentemente, da cantora, superando a rapidez da fala que imprime aos diálogos iniciais. A Daniel Chagas é exigido, pela inconsistência do texto, que seja somente uma presença truculenta.