Crítica do Segundo Caderno de O Globo (26/3/2014)
Crítica/ Uma Vida Boa
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Conflitos interiores no jogo de esconder e descobrir |
Rafael Primot,
autor da versão teatral de história verdadeira, transformada no filme “Meninos
não choram”, segue a trilha dos acontecimentos reais, mais como registro factual
do que como subjetivação dramática. Garota abandona sua pequena cidade no
interior dos Estados Unidos para tentar atenuar os embates que sua aparência e
sensibilidade de garoto desencadeiam em outro ambiente social. O pacto amoroso
com jovem cantora e a violência de ex-detento que encontra na nova cidade despertam reações extremadas,
ampliando os conflitos interiores de quem vive a dualidade de gêneros. A
narrativa, mesmo sem linearidade expositiva da ação, se desenrola, baseada em
datas e situações demarcadas naturalisticamente, fixando o drama pelo
documental. A personagem se revela pelas características externas e se
distancia da complexidade individual, ultrapassada pela virulência imposta à sua
trajetória até o brutal desenlace. A montagem de Diogo Liberano reverte o
aspecto mais generalista da dramaturgia, centrando-se nas contradições de
físico e forma, identidade e distinção, esconder e descobrir, desenhando o
entrechoque com traços oníricos. A plasticidade da sóbria e cirúrgica
cenografia de Brunella Provvidente, a excelente iluminação de Daniela Sanchez, autêntica
codiretora, o múltiplo figurino de Bruno Perlatto e a trilha sonora original de
Diogo Ahmed Pereira são o enquadramento para encenação de um espaço emocional.
É a partir da figura dos atores, que se movimentam em intenso ritmo de obscuras
trocas, que o diretor explora os gestos reveladores nas constantes mudanças de
roupas, numa coreografia de desvendamento, e na tensão corporal, numa luta de opostos.
A direção de movimento de João Pedro Madureira é decisiva para que a ação física
adquira efeito simbólico na interpretação do trio de atores. Amanda Vides Veras
estende um fio sutil entre a composição detalhada da aparência e a
interpretação intensa de fragilidades. A atriz consegue levar a personagem para
além do papel de vítima, do preconceito e da agressão, para alcançá-la na sua dimensão
humana. Julianne Trevisol se apropria, crescentemente, da cantora, superando a
rapidez da fala que imprime aos diálogos iniciais. A Daniel Chagas é exigido, pela
inconsistência do texto, que seja somente uma presença truculenta.