1ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo
São Paulo - A primeira edição da Mostra
Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp), com dez espetáculos de amplo
espectro de linguagens, reflete a acuidade e inteligência teatral de curadoria
que não se desviou de provocativas ofertas de recepção à plateia.
São várias e até conflitantes direções do olhar, capazes de lançar petardos
conservadores Sobre o Conceito de Rosto no Filho de Deus,
deformações ambíguas em Bem-vindo à Casa, coreografia
verbal em Anti-Prometeu, manual politico em Escola, e
humor agit-prop em Ubu e a Comissão da Verdade. As
muitas rupturas na forma e quebras narrativas, a ressignificação da gramática
cênica e a amplitude do suporte plástico se revelam em montagens que subvertem
cânones, atritam-se com sensações e sentimentos limítrofes e
dilapidam e mutilam o corpo teatral numa cirurgia de extirpação e
recomposição de meios. É grande a expectativa pela segunda edição, já com data
em 2015: de 6 a 15 de março.
Gólgota Picnic: a frontalidade de dissonâncias |
Gólgota Picnic, criação do argentino Rodrigo Garcia apresentado por grupo
espanhol, propõe ações cênicas que estabelecem mediações entre monólogos de
irônica crueza e imagens de referência pictórica, numa ambientação sensorial de
símbolos cristãos e consumistas. No piso do palco, centenas de pães de
hambúrguer formam tapete de persistente cheiro para que os atores, reunidos num
piquenique, ritualizado por fluxos alimentares, sanduíches decorados com
minhocas vivas e corpos banhados de tinta em crucificações performáticas, desarticulem
relações da existência contemporânea com as impossibilidades da veracidade do
religioso e da expressão articulada do individual. A palavra, sempre direta e
projetada na frontalidade da cena, circula nos limites de seu alcance, na
tentativa de ecoar as dissonâncias do barateamento e vulgarização de vivências
regidas por grifes, padrões corporais, euforias orquestradas e desejos
pré-fabricados. A imagem, que na tela projeta as fissuras da grande
arte como metáforas, e no palco investe na representação quase bizarra
de desajustes como linguagem, atualiza o conflito. É da vinculação dos dois
planos que Garcia cria a sucessão de cenas, prodigamente ilustrativas desse
estado de fricção, em que o espectador é confrontado com o seu repertório
receptivo (do nojo diante da proximidade do escatológico, ao riso pela exploração
grotesca do corpo, e a impaciência frente ao belo e desconcertante concerto de
piano). Um poderoso mergulho entre as tantas e tão instigantes prerrogativas de
fruição do teatro na atualidade.
Hamlet na
versão do lituano Oskaras Korunovas é aberto com a dúvida do atormentado
personagem – “Quem sou eu?”- com o elenco frente ao espelho da bancada do
camarim, anunciando o percurso da cena como um reflexo, distorcido, maquiado,
quase uma bufonaria, que conduz ao escuro do caos sanguinolento e mudo. É da imponderabilidade
com que o teatro se defronta com a dissimulação e a mentira de ser aquilo que
busca revelar, que esse Hamlet encena fragmentos da representação. Os camarins
que ambientam as coxias, espaços atrás dos quais se armam e desarmam as tramas,
são movimentados continuamente, espelhando e encobrindo o que se quer
desvendar, elementos simbólicos a que se recorre como pantomina para chegar à
verdade. Korunovas inverte cenas, amplia ações físicas, decompõe sentidos e
reduz a personificação, criando com múltiplos anteparos um teatro sem sombras,
jogando luz no que, persistentemente, não se pretende deixar
ver.
Eu Não Sou Bonita, a instalação performática da espanhola Angélica Liddell,
marcadamente autobiográfica, reproduz a experiência de uma mulher, abusada
sexualmente quando criança, submetida a agressões morais e sociais na
juventude, reprimida por instituições militares e religiosas, e esgotada
existencialmente aos 48 anos. A atriz-personagem percorre cada um desses
momentos, impulsionada pela vontade de se expor, de exibir tais vivências.
Nesse mergulho na desconstrução do indivíduo, Liddell se apropria dos signos do
universo que a violentou, reutilizando-os com os mesmos instrumentos que
a feriram. Tomando posse do masculino que a amesquinhou, física e
moralmente, reinvindica para seu corpo as mesmas armas dos homens que a
violentaram. Para tanto, investe contra o corpo, mutilando-se e alimentando-se
do próprio sangue, em metáfora da ceia cristã, mergulhando aos mãos em leite
fervente, sugerindo sexualidade animalizada em litúrgicos rituais de negação.
Antes que provocar choques moralizantes ou desconfortáveis imagens de confronto
com comportamentos reprimidos, Eu Não Sou Bonita se
circunscreve ao plano expositivo, buscando em secundárias referências ao cinema
de Luis Buñuel e na imagística da religiosidade espanhola o que não consegue
transpor, em emoção e fisicalidade, para
sua sufocante biografia