quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Temporada 2014

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (24/9/2014)

Crítica/ A Estufa
Jogo de realidade e ficção em thriller político

A narrativa deste thriller-político de Harold Pinter oferece várias encruzilhadas no desenvolvimento da ação que podem levar o espectador a escolher tantos caminhos quanto a trama insinua. O diretor de uma instituição, cujos internos são designados ora por números, ora como pacientes, mantém o poder de maneira utilitária, fraudando a burocracia e se servindo de auxiliares e detentos na sua ambição de administrador. A gravidez de uma das internas e o assassinato, sob tortura, de outro deles completam o clima de mistério e estranhamento causados por presenças enigmáticas que se movimentam dentro de engrenagem social difusamente repressiva. Quem é efetivamente o diretor? Quais as razões de suas atitudes? O que explica o comportamento de quem o cerca? Nenhuma das perguntas encontra resposta conclusiva, apenas indícios que são a razão mesma de como o autor constrói seu universo dramático. As entrelinhas, as motivações subjacentes, as pausas entre intenções obscuras envolvem personagens que não se explicam ou enganam por suas atitudes contraditórias. É desse jogo de realidade e ficção, em que o  humor se contrapõe ao policial e o político ao individual que Pinter fornece pistas, sem indicar um único sentido que provoque reações convergentes para decifrar vagas referências. O diretor Ary Coslov circula por esta “nuvem” de dados sem localizá-los sob determinante ótica cênica. Movimenta com tantos instrumentos quando o texto oferece (humor, mistério, ação, absurdo, desvios) o ritmo narrativo, oscilando entre a tensão abstrata e o cômico embutido, sustentando uma atmosfera imponderável que se desmente continuamente. Com produção modesta - cenário de poucos elementos mas eficiente de Ary Coslov, figurino cuidado de Biza Vianna (os sapatos vermelhos da senhorita Cutts ajudam a compor a personagem) e a iluminação sensível de Aurélio de Simoni -, “A estufa” tem tradução fluente de Isio Ghelman e Ary Coslov. Mas o diretor alcança maior voltagem na condução do elenco, que consegue transmitir as ambiguidades dos personagens em interpretações que se concretizam em pausas e efusões em ritmada sequência. Mario Borges como o irascível diretor, atribui pusilanimidade e cinismo às atitudes desconcertantes daquele que se revela expansivo para esconder manipulações obscuras. O ator demonstra fina sintonia com o Roote, materializando com humor na medida e subjetividade dosada a fragmentação de uma personalidade fluída. Um trabalho de íntegra elaboração. Ísio Ghelman se destaca pela sutileza e dubiedade com que desempenha o papel de um assessor inescrupuloso de frases de gramática servil e dissimulada. Uma atuação bem traçada. Marcelo Aquino como um bêbado desenha em gestos largos e malabarismo dançado um ritual de disfarces que, em alguns momentos, lembra uma figura de Magritte. Pedro Neschling, em que pese a carga intensa que empresta ao jovem crédulo, é fiel e coerente à sua composição até o final. Paula Burlamarqui se sai melhor ao expor fisicamente as manhas sedutoras da senhorita Cutts. Thiago Justino, perfeito no velho zelador, está mais contido como o fiscal.