Crítica/ “Boca de
Ouro”
A primeira cena de “Boca de Ouro”, na versão de
Gabriel Villela, é embalada pela marchinha “Cidade maravilhosa”, e celebrada com
confete e serpentina. É o solitário momento em que a tragédia carioca do
bicheiro de Madureira sugere a cidade, prenunciando em ritmo lento e alusão
carnavalesca a sua violência suburbana. O que ambienta a narrativa de Nelson
Rodrigues está para além do Rio, da sordidez de um parto em uma pia e da morte
atingida por balas perdidas nas desigualdades. Boca sobrevive à sina da origem, construindo para si, representações de seu
oposto, numa riqueza que mastiga as misérias e deglute a mítica de um Drácula
periférico e de um deus Asteca alegórico. Do que é realidade, sobra apenas a
compra do que lhe foi negado e do que o distancia do abandono do começo. Neste
arco em que o personagem é revisto em três narrativas, o autor inclui as suas
mais sensíveis obsessões (sexualidade, destino, crônica e tragédia), que
incontáveis montagens privilegiaram em variadas opções. A direção de Villela é,
decisivamente, mítica, dispensando geografias e desenhando uma dramaturgia de
imagens. Nelson emoldura o traço inconfundível do diretor que, não por acaso,
também assina a cenografia e os figurinos. O quadro se impõe à palavra, em
permanente comentários visuais aos diálogos, referendando exuberância ilustrativa,
em mão contrária ao trágico. O texto mostra alguma dificuldade em se amoldar ao
afresco de dourados e brilhos, detalhes e adereços, que inundam o olhar e
embotam os ouvidos. Dedos com dedais imitam os sons do batucar na máquina de
escrever. Imitação da voz de apresentadora de televisão, transforma personagem
em tipo. A trilha musical abusa das emoções derramadas de sambas-canção e de exaltação
do repertório de Dolores Duran, Herivelto Martins, Lupicínio Rodrigues, João
Bosco e Aldir Blanc. Cenas de desconcertante beleza, se alternam com gadgets figurativos, acompanhando a
interpretação melodramática do elenco. A montagem acaba por estampar humor
involuntário, possível de ser absorvido pelo original, mas tirânico quando
dominante. Mariana Elisabetsky, a cantora que assinala com voz dramática a ação
na gafieira (ou seria um cabaré europeu de início de século?), dá o tom evocativo.
Mel Lisboa recondiciona Celeste com sensualidade de ninfeta. Lavínia Pannunzio
(Dona Guigui) e Claudio Fontana (Leleco), ao lado de Chico Carvalho (Caveirinha
e Maria Luísa) conferem aspecto mais rodriguiano às suas atuações. Malvino
Salvador ( Boca de Ouro) não dispõe da malandragem e de jogo de cintura para avançar
de bicheiro-boxeur a entidade asteca. Cacá Toledo, Guilherme Bueno, Leonardo
Ventura, e o pianista Jonatan Harold contribuem para esse retoque panorâmico da
escrita cênica de Nelson Rodrigues.