Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (30/3/2016)
Crítica/ “Dorotéia”
Diálogo oculto com vozes simbólicas |
Nelson Rodrigues foi quem definiu “Dorotéia” como
“farsa irresponsável”, acrescentando a universo dramático tão marcado por
obsessões, psicológicas, míticas e simbólicas, dubiedade conceitual. Na própria
avaliação do autor estão contidas as dificuldades de um texto de emperrada circularidade
narrativa, aprisionado por situações absurdas e exaurido em diálogos surreais.
A trama se propõe a explorar a beleza estigmatizada pelo perda da pureza, e expor
as chagas deixadas pelos desejos reprimidos e pela náusea existencial. Na volta
de Dorotéia à casa familiar, depois da morte da filha e da vida como
prostituta, encontra as mesmas mulheres que demonstram sua repulsa ao sexo,
logo depois da noite de núpcias. A culpa da filha pródiga, será purgada pela
mancha de feiura que a aproximará da matriarca Dona Flávia, e a levará assistir
ao retorno ao ventre materno da única das mulheres que se permitiu aceitar o
prazer do sexo. O simbolismo que alcança o humor delirante, articulado a
melodrama absurdo, está representado pelo homem como um par de sapatos,
embrulhado em folhas de jornal, e em jarra que surge em visão intrigante,
depois da posse masculina. O cenógrafo José Dias delimita o palco por árvores
de ramificações retorcidas, criando área vazia de cor e híbrida de adereços. O
espaço estabelece distância física e neutralidade visual, que a iluminação de
intensidade colorida e composição estetizante integra, parcialmente, aos quatro
lados da plateia. A escolha cenográfica torna dispersa a verborragia dos
diálogos, acentuando ainda mais a monotonia da sua repetição. Apesar da cuidadosa
execução, o figurino de Lulu Leal deixa dúvidas sobre em que época se inspirou.
A música, com trilha original de João Paulo Mendonça, Leila Pinheiro, Fernando
Gajo e Rafael Kalil, é um componente que, para além de sonorizar a ausência de
ação, adensa as inesperadas pausas. O diretor Jorge Farjalla com essas opções, mais
cênicas do que intervenientes na essência dramática, amplia as quebras disritímicas
da narrativa e não encontra a convergência do melodramático bizarro com as obsessões
caricaturais. Jacqueline Farias e Alexia Deschamps tentam suavizar o pesadelo
histérico das personagens. Dida Camero, com sua voz bem projetada e humor
crítico, marca a sua curta participação como a mãe do noivo. Ana Machado
corporifica, com visagismo estranho, a jovem que vive, apesar de nascer morta.
Letícia Spiller, menos atenta às
modulações de suas falas, contracena com o comprometimento com que Rosamaria
Murtinho se apropria do texto.