Críticas do
Segundo Caderno de O Globo (de 25/2/2016 a 6/3/2016)
Crítica/ “Alice
mandou um beijo”
Comemoração das fraturas familiares |
A narrativa de Rodrigo Portella se configura como
drama memorialista com traços psicológicos. A morte da Alice do título deixa
acirradas as tensões familiares dos sobreviventes, que a partir do
desaparecimento da caçula, se debatem, acuados pelos limites da cidade pequena
em que vivem. As lembranças são desencadeadas pelas relações instáveis que explodem
com intensidade desagregadora com ausência
da morta. O movimento circular dos membros desse clã, restrito a dar voltas em
torno da dependência mútua, não deixam que saiam do lugar. Presos ao casarão da
família e ao espaço afetivo de suas contradições, alimentam esses laços
doentios com os atritos da convivência. De puro realismo e estrutura dramática
alinhada ao desenho definido de personagens, à linearidade da ação e à
coerência nos diálogos, o texto é, não só, bem acabado. Propõe com o naturalismo
com que observa atitudes, uma aproximação com a plateia que facilita a comunicabilidade do entrecho, mas sem baratear
seus fundamentos teatrais. A atmosfera que envolve os conflitos guarda alguma
lembrança, ainda que em outra escala, daquela que ressalta do romance “Crônica
da casa assassinada”, de Lúcio Cardoso. O diretor Rodrigo Portella acompanha o
autor no bom acabamento da montagem. Na cenografia de Raymundo Pesine, em que
armários e gavetas escondem roupas velhas, emoções inúteis e festas
fracassadas, a posição frontal dos móveis dimensionam a área do embate das relações.
Na iluminação de Renato Machado os contrastes se estabelecem com oscilante claridade. Nos figurinos de Daniele Geammal,
os atores vestem a imagem realista dos personagens. Na trilha sonora de Leo
Marvet, a sonoridade faz contraponto às inquietudes. Na orquestração desta
desafinada família, o diretor desarticula os pontos de atrito, mantendo um mesmo
balanceamento no ritmo e no clima da trama, que sofre com um certo alongamento que
retira-lhe, em parte, a sintética
sustentação dramatúrgica. O elenco, que defende personagens com características
encobertas, correspondem a cada um deles com cuidados de preparação. Bruna
Portella como a irmã que cuida dos parentes, à custa de sua anulação, agarra-se
ao papel com força, o que às vezes, destoa da insegurança de Jandira. Vivian
Sobrino, a outra das irmãs, está menos segura na interpretação da dubiedade de
Oneida. José Eduardo Arcuri empresta sua figura ao pai abstraído do que se
passa com os seus. Tairone Vale está um tanto contraído pela indefinição do
viúvo, enquanto Luan Vieira encorpa com ótimo trabalho de corpo e voz, o menino
Robério.
Crítica/ “O
primeiro musical a gente nunca esquece”
Sob o abrigo do gênero, “O primeiro musical a gente nunca esquece”
alinhava vários remendos num patchwork
roto. Nesta costura mal feita, os pontos de arremate são frouxos e se esgarçam
à menor tentativa de vesti-los de musical. Uma coletânea de jingles comerciais se mistura a canções
de “O mágico de Oz” e “A noviça rebelde”, entre algumas outras, artificialmente
introduzidas por uma trama pífia, sem que o conjunto tenha o mínimo de
coerência e validade cênica. A sucessão de comercias não se encaixa, senão pelo fato de
personagens estarem ligados a agência de publicidade. Os hits das comédias musicais surgem pela insustentável admiração da
mocinha pelas luzes da ribalta. A dedicação do marido pela trabalho e os gadgets eletrônicos o afasta da mulher,
a romântica que encontra nos musicais o escape da indiferença do cônjuge. O
aniversário de 20 anos de casamento, provoca na esposa uma espécie de transe,
que faz com que se comunique apenas através das canções mais populares das
peças da Broadway e do West End. Ao absurdo desta comédia musical de erros, não
escapa a ligeireza com que o autor e diretor Rodrigo Nogueira reuniu material
tão desconexo e com indesculpável concessão ao clichê e à diluição do que
se propõe ser comercial. O espetáculo
longo, de 100 minutos com intervalo, usa muita cor na cenografia de Jackson
Tinoco para dar um pouco mais de vida à arquitetura convencional do espaço, com
a contribuição da iluminação de Adriana Ortiz. Rodrigo Negri e Priscilla Mota
recorrem a códigos coreográficos exaustivamente explorados por tantos musicais,
sem que introduzam qualquer originalidade. A direção musical e arranjos de Tony
Lucchesi mantém-se no plano do bom artesanato, que se estende à execução dos
sete instrumentistas. Numa produção com uma malha extensa de equívocos, cabe ao
elenco a função de porta-voz e o papel de dar corpo a tão desastrado
bordado. Os atores-cantores bailarinos –
Lellane Teles, Fabiana Tolentino, Deborah Polistchuck, Carol Botelho, Marco
Ferrari, Leandro Melo, Junir Zagotto e Pedro Arrais – têm participações na
medida das restritas exigências coreográficas. O quinteto central – Amanda
Acosta, Marcelo Varzea, Bia Montez, Reiner Tenente e Hugo Kerth – se distribui
por características de melhores cantores do que comediantes, ainda que todos
empenhados a não sucumbir ao pouco estímulo às suas interpretações.
Crítica/ “Depois
do amor”
A exemplo de como escreveu “Callas”, seu texto
anterior, encenado há dois anos, Fernando Duarte escolheu para biografar um
momento da vida de Marilyn Monroe.
Frágil, com problemas com álcool e tranquilizantes, o autor focaliza a atriz
quando recebe a figurinista do filme “Something’s got a give” para prova de
roupa e para uma conversa áspera sobre a amizade interrompida no passado, pela disputa amorosa entre ambas, vencida por
Marilyn. A instável e pouco consistente situação dramática que sustenta esse
enfretamento sem conflito real, se revela pretexto para um monólogo envelopado por diálogos, meras escadas para que a estrela exponha suas
fraquezas. A indisciplina diante das imposições do estúdio e a insatisfação
emocional que a levariam a morte são exploradas como compilação de fatos que
não alcançam complexidade de uma
personalidade destrutiva. Fernando Duarte mergulha no mito, no que é possível
reconstruir a partir da imagem e da cópia do que foi tantas vezes visto e
reconfirmado como retrato da diva do cinema. A ideia é reproduzir, refazer um
quadro já bastante conhecido com a preocupação de ser o mais fiel possível ao
original. E como se sabe, as cópias não
passam de banalizações. A ideia de refazer é levado ao ponto do figurino usado
por Danielle Winits ser idêntico, no corte e na estampa, aos dos seus últimos
filmes e fotografias. A montagem também segue essa trilha imitativa, com
projeções dispensáveis da atriz. Maria Eduarda Carvalho como a figurinista e
antagonista da estrela, permanece com
discreta equidistância da centralidade
da protagonista. A atriz supera com elegância a inexpressividade da personagem.
Danielle Winits enfrenta, com apelo mimético, a tarefa de ser uma Marilyn
verossímil. Em parte, consegue corporificar uma imagem, ainda que tenha maior
dificuldade em interpretar os conflitos da mulher. O objeto sexual manipulado
pela atriz que construiu a carreira, exatamente pela imagem, é ao que Danielle
Winits recorre em atuação sincera.