Crítica do Segundo Caderno de O Globo (3/12/2014)
O universo dramático do americano Nicky Silver é decisivamente
familiar, mas não como arena de choques amortecidos de conflitos dissimulados
pela convivência doméstica. As disfunções são explícitas e a hipocrisia indisfarçada,
como se cada núcleo familiar de sua dramaturgia se desintegrasse em permanente
fricção emocional. Em Adorável Garoto,
casal mantém o casamento com cinismo de relacionamento falido, em que amante
provoca algum ruído no diálogo da dupla e psicanalista nada ortodoxa revisa a
terapia do filho. A chegada deste filho, jovem professor em fuga, à espera de
que os pais o acolham depois de cometer desvio grave de comportamento, é o
ponto de partida da trama de contornos realistas, carregados de cores berrantes
para borrar o olhar. A exposição das agressões verbais do casal, em que o homem
convive com a amante e a mulher alcoólatra, parece diluição tardia de confronto
semelhante, melhor construído por Edward Albee. O final trágico, em que se pede
de empréstimo a atitude inexorável de Édipo, não se revela muito convincente,
mesmo admitindo a solução como eventual metáfora. Os personagens que gravitam
em torno do centro filial, funcionam mais como figuras secundárias para
preencher vácuos narrativos do que propriamente para apoiar a ação. O autor
demonstra a perspicácia de incluir a estranheza e dosar a provocação na medida exata
do efeito controlado do choque. Deste modo, Silver manipula com habilidade a recepção
da plateia. Maria Maya transmite com sua direção fluída e linearmente
tensionada, inegável adesão às reticências do texto. Os pontos descontinuados
do entrecho e a inconsistência de certos personagens são transpostos
cenicamente sem disfarces. A presença da psicanalista na plateia, entre o
público, resolve com esperteza o seu papel dispensável. E os laços fragilmente
atados da narrativa se soltam, com facilidade, no compasso do ritmo ágil. A
cenografia de Ronald Teixeira deixa à vista o arcabouço de uma casa de desenho
infantil, que ganha tons claros na iluminação de Adriana Ortiz. Leonardo Franco
e Isabel Cavalcanti, estabelecem o descompasso do casal e a construção perversa
de sua cumplicidade em registros distintos. Enquanto Leonardo investe numa
atuação marcada pelo veracidade do durão insensível, Isabel exibe o
desequilíbrio da mulher que age sob o impulso do álcool. Raquel Rocha, a amante
que vive uma história paralela, artificial e despregada da trama central,
responde com igual artificialismo à irrealidade da personagem. Mabel Cezar reage
com humor a implausível psicanalista sem noção. Michel Blois, numa composição corporal,
às vezes um tanto acentuada, manobra as emoções do filho portador de desejo
perturbador com carga interpretativa bem administrada. Só não consegue driblar
o irrealismo do final.