Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (10/12/2014)
Crítica/ Galápagos
De origem, o texto de Galápagos é uma ideia da dupla de atores em cena, Paulo Giannini e
Kadu Garcia, desenvolvida por Renata Mizrahi, que assina a narrativa. De certo
modo, determina um desvio na
dramaturgia de Renata, fixada no realismo, do qual os seus melhores exemplares autorais
são “Os sapos” e “Silêncio”. Ao concentrar em um bar dois homens de
sensibilidades distintas – artista cego e entediado e pai de família frustrado –
altera os rumos da sua escrita cênica na viagem existencial em que o ponto de
partida é o desejo difuso de mudança, e o de chegada, o de encontrar uma ilha apaziguadora
de mistérios ancestrais. O percurso, em que um expõe o seu cotidiano medíocre e
o outro o escuta com monossílabos tolerantes como resposta, é embalado pela voz
de cantora de repertório intensamente emocional. Os dois únicos ouvintes desta
cantora nunca visível formam a plateia solitária de suas próprias vozes internas,
num embate, a princípio, surdo e dissonante, em seguida, ruidoso e solidário. Entre
eles, paira o desconhecido que se interpõe a cada movimento de aproximação, que
a partir do confinamento do espaço do bar navega até a liberdade da paisagem ilhada
por amplo horizonte. Renata Mizrahi mantém o seu domínio do diálogo, já
demonstrado em textos anteriores, acrescentando-lhe tonalidade poética que pode
apontar outras cores à sua dramaturgia. No prólogo, quando um dos personagens
descreve a natureza animal da sua busca da identidade humana, inscreve dimensão
lírica ao rigor dramático. Isabel Cavalcanti demonstra apreensão quase
sensorial do texto. A sua direção se articula através de sons e invisibilidades,
que deixam entrever intrigantes razões e
impositivas ausências. A plateia se transforma em sonoridade como se fosse a
representação da cantora que não se vê e para a qual se dirige,
permanentemente, o olhar dos atores. Um pequeno ruído, quase na última cena, situa
a passagem de tempo entre as amarras do início e o aportar do fim. A cegueira
se torna metáfora para que a diretora acentue o caráter tátil do que encobre o
que não se deixa ver e aquilo que se revela, apenas nos detalhes, ao longo da
ação. O cenário de Aurora dos Campos na horizontalidade do balcão de bar e nas
cortinas esvoaçantes de fundo compõe com a iluminação de Renato Machado a contracena
visual, emoldurada pela voz dramática e poderosa de Simone Mazzer. O elenco,
responsável pela concepção original e, portanto com indisfarçável intimidade
expressiva com o material dramático, não deixa dúvidas sobre a adesão como
intérpretes ao roteiro de que foi inspirador. Há cumplicidade evidente entre
ambos, capaz de sustentar a atmosfera de mistério que impulsiona cada palavra e
gesto. Kadu Garcia adota ar bonachão para projetar a insatisfação familiar e
profissional do personagem, explorando, sem maior comedimento, seu tipo físico
em atuação mais naturalista. Paulo Giannini, mesmo que adote um certo
secretismo para o homem de aguçada visão interior, resvala nos excessos de
composição rígida.