Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (24/12/2014)
O maior mérito da montagem de Daniel Herz para a
comédia oitocentista do francês Beaumarchais, sonorizada pelas músicas da ópera
homônima de Mozart, é o de ressaltar o melhor do texto e transcrever a
excelência da partitura. Da junção de elementos de tão forte origem e tradicionais
cânones, o diretor de cena Leandro
Castilho, diretor musical e versionista das letras de Mozart e Da Ponte, recondicionaram
em linguagem teatral única a trama ardilosa e os tons clássicos. A ação
farsesca, que apoia o sentido crítico a comportamentos e costumes nas relações
sociais da época, concentra-se em Fígaro, que assume o papel daquele que, com
esperteza, dribla os poderosos, apontando para a arbitrariedade de direitos. A
versão cênica de Herz ressalta as artimanhas do personagem e reveste de desencontros e conciliações a tentativa
incansável de manter a ordem hipócrita da convivência. Investe na comédia,
apropriando-se de suas várias
manifestações, numa dinâmica alegre e ritmada do ridículo apontado pela farsa, pelo
jogo de disfarces do vaudeville e pela
agilidade do humor popular. A ambientação que evoca um sarau musical, com o
elenco vestido com o sugestivo figurino de Antonio Guedes e tocando os
instrumentos que acompanham as suas interpretações, envolve e determina a
escolha bem sucedida de utilizar como contraponto a obra mozartiana. A boa
tradução do texto de Barbara Heliodora encontra na habilidosa versão das letras
e na introdução de referências nacionais às composições operísticas, assinadas
por Leandro Castilho, unidade expressiva que insufla comunicabilidade e atraente
agilidade ao espetáculo. Ainda que esse quadro seja, crescentemente, valorizado
ao longo da narrativa, no início, até que se estabeleça o código da encenação e
que a plateia o domine, a montagem surge um tanto desfocada da nitidez ágil e
cômica que se segue. Os atores, nem todos músicos, projetam a difícil partitura
com a precisão necessária ao diálogo com a atuação. Neste conjunto de
harmoniosa intensidade, mesmo os que têm menor intimidade com a execução
instrumental, compensam com a voz cantada e interpretações afinadas as eventuais
limitações. Leandro Castilho é um Fígaro mais malemolente do que arteiro. Carol
Garcia mostra segurança ao cantar e poucos recursos como a maliciosa noiva Suzana. Ernani Moraes, menos dotado ao
canto, brinca com a truculência e ingenuidade do Conde de Almaviva. Tiago Herz
tem a seu favor a juventude no desempenho de Cherubino. Alexandre Dantas assegura
participações sempre divertidas. Ricardo Souzedo, Adriano Saboya e Carolina
Villar marcam presença em papéis mais circunstanciais. Claudia Ventura imprime
conotação farsesca aos calores de Marcelina e Solange Badin cria com bem medido
tom cômico as estripulias amorosas da Condessa de Almaviva.