Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (31/10/1014)
Crítica/ Entredentes
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Mulçulmano e judeu diante de códigos auto-referenciados |
No espaço entre muros e tensões políticas, Gerald
Thomas instala alegoria performática que serve a biografia e ao temperamento do
ator Ney Latorraca. A projeção entre imagem e palavra proposta pelo diretor tem
o sentido exibicionista de piadas seriadas em torno de um intérprete que
desempenha o papel mediúnico de representar o espírito beligerante de conflitos
sociais. Latorraca empresta voz a Thomas que, suspostamente, refletiria sobre questões
contemporâneas, servindo-se do ator como mais um dos signos aos quais recorre
para provocar a reação do espectador. O problema está em que o diretor esvazia
a sua própria estrutura construtiva, mostrando o desgaste de sua sustentação e a
pouca ressonância na plateia de códigos auto-referenciados. Até que ponto o
prólogo de astronautas evadidos da Terra pode ter sequência nas imprecações de
um mulçumano e judeu diante do Muro das Lamentações sem que pareça apenas o
começo de uma série de jogos de cena? Ou que uma atriz com forte sotaque
português vocifere contra certo comportamento brasileiro sem que não se pense
em crítica ingênua a um “complexo de vira-lata” colonizado. Até mesmo no
visual, uma das marcas mais destacadas de Gerald Thomas, a procura de impacto, visível
na genitália feminina da cenografia, e de efeitos na iluminação, se sobrepõe a
qualquer contundência que se pretenda no estabelecimento da ambientação. Edi
Botelho, ator de vários espetáculos da extinta companhia Ópera Seca, está
familiarizado com o método do diretor, mas desta vez se restringe a ser
comparsa na dupla, que lembra vagamente personagens de Samuel Beckett, com Ney
Latorraca. Figura central e eixo em torno do qual a montagem foi concebida, o
ator tem a oportunidade, com alguma ironia, de submeter o seu humor a falas entrecortadas
de pretensão. Maria de Lima, em participação indefinida na narrativa cênica e,
talvez por esta razão, seja quem alcance a melhor performance com a sua
explosiva, desbocada e arrebatada celebração ao destempero do vazio.