Crítica do
Segundo Caderno de O Globo (5/11/2014)
Crítica/ Chuva Constante
|
Dois policiais enfrentam seus conflitos interiores |
O americano Keith Huff é um experiente roteirista
de seriados de televisão, cuja fórmula transfere, parcialmente, para teatro com
revestimento de drama psicológico. Dois policiais de Nova York, amigos de infância,
que mantêm ligação de poder, em que um demonstra truculência e preconceito, e o
outro timidez e solidão, são lançados ao confronto que os distancia em meio a
violência da cidade. A substituição nos papéis familiares e traições
profissionais atingem a amizade fraturada por caráteres conflitantes e choques
urbanos. Prostituição, mortes, atentados, limites rompidos na atuação policial formam
o painel de fundo para o monólogo entre os companheiros de uniforme e de vida,
que dialogam consigo mesmos para ganhar posição num duelo interior. Sob a chuva
intermitente que encharca as decisões dos personagens, metáfora de atos omissos
e embates sem vencedores, a narrativa se estrutura neste piso escorregadio de
vozes individualizadas. Mas se o eixo realista recebe tratamento formal próximo
ao de duplo monólogo, é da engrenagem do seriado policial da tv americana que o
autor transpõe as características e a tensão que procura acionar como impulso
dramático. A tradução fluente de Daniela Ávila Small permite que se ouça com
maior intimidade a linguagem de homens endurecidos pela profissão,
insuficiente, no entanto, para aproximar universo e protocolos policiais tão diversos
dos nossos. Esse é um ponto a mais que alonga as distância entre as realidades
e que confirma os cacoetes da origem. Paulo Moraes, como diretor e cenógrafo, acentua a
teatralidade seca e virulenta do texto com recursos que se mantêm no equilíbrio
delicado entre ruidosa trilha sonora, explosivo
grafismo e frontalidade (é com a plateia que os atores falam) da conversa
interiorizada. Como as cenas são expositivas, não reproduzindo atitudes
visíveis, a dupla de atores se fixa na palavra como narração, no efeito de contar
e propor imagens fortes e agressivas, que seriados explorariam com apetite
visual, mas que o diretor desidrata de traços sublinhados. Moraes busca tensão
direta com a plateia, intermediada pela coreografia bem marcada dos gestos e a alta
temperatura do tom das palavras. Nos movimentos de atos contidos e falas de vontades suspensas, os intérpretes deixam
entrever as dificuldades de cada um encontrar o lugar em que são possíveis
sentimentos de lealdade e comportamento ético. Malvino Salvador, apesar da disponibilidade
que demonstra na interpretação do policial inconformado, se prende a composição
naturalista, provocando linearidade e coloração única às mudanças vividas pelo
homem com destino ao trágico. Menos por conta da contenção do policial pouco
expansivo, Augusto Zacchi observa com cuidadosa atenção e maior sutileza os
passos duvidosos do homem até as suas tristes conquistas.