quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Temporada 2014

Crítica do Segundo Caderno de O Globo (5/11/2014)

Crítica/ Chuva Constante

Dois policiais enfrentam seus conflitos interiores
O americano Keith Huff é um experiente roteirista de seriados de televisão, cuja fórmula transfere, parcialmente, para teatro com revestimento de drama psicológico. Dois policiais de Nova York, amigos de infância, que mantêm ligação de poder, em que um demonstra truculência e preconceito, e o outro timidez e solidão, são lançados ao confronto que os distancia em meio a violência da cidade. A substituição nos papéis familiares e traições profissionais atingem a amizade fraturada por caráteres conflitantes e choques urbanos. Prostituição, mortes, atentados, limites rompidos na atuação policial formam o painel de fundo para o monólogo entre os companheiros de uniforme e de vida, que dialogam consigo mesmos para ganhar posição num duelo interior. Sob a chuva intermitente que encharca as decisões dos personagens, metáfora de atos omissos e embates sem vencedores, a narrativa se estrutura neste piso escorregadio de vozes individualizadas. Mas se o eixo realista recebe tratamento formal próximo ao de duplo monólogo, é da engrenagem do seriado policial da tv americana que o autor transpõe as características e a tensão que procura acionar como impulso dramático. A tradução fluente de Daniela Ávila Small permite que se ouça com maior intimidade a linguagem de homens endurecidos pela profissão, insuficiente, no entanto, para aproximar universo e protocolos policiais tão diversos dos nossos. Esse é um ponto a mais que alonga as distância entre as realidades e que confirma os cacoetes da origem. Paulo Moraes, como diretor e cenógrafo, acentua a teatralidade seca e virulenta do texto com recursos que se mantêm no equilíbrio delicado entre  ruidosa trilha sonora, explosivo grafismo e frontalidade (é com a plateia que os atores falam) da conversa interiorizada. Como as cenas são expositivas, não reproduzindo atitudes visíveis, a dupla de atores se fixa na palavra como narração, no efeito de contar e propor imagens fortes e agressivas, que seriados explorariam com apetite visual, mas que o diretor desidrata de traços sublinhados. Moraes busca tensão direta com a plateia, intermediada pela coreografia bem marcada dos gestos e a alta temperatura do tom das palavras. Nos movimentos de atos contidos e  falas de vontades suspensas, os intérpretes deixam entrever as dificuldades de cada um encontrar o lugar em que são possíveis sentimentos de lealdade e comportamento ético. Malvino Salvador, apesar da   disponibilidade que demonstra na interpretação do policial inconformado, se prende a composição naturalista, provocando linearidade e coloração única às mudanças vividas pelo homem com destino ao trágico. Menos por conta da contenção do policial pouco expansivo, Augusto Zacchi observa com cuidadosa atenção e maior sutileza os passos duvidosos do homem até as suas tristes conquistas.